sexta-feira, 6 de junho de 2008

As Trouxas.

Cada qual com seu fardo, cada palavra com seu peso.

Mais de duas horas faziam desde que a intrusa se acomodara no canto da sala manifestando uma tranqüilidade atroz, contrária à sua natureza imunda, corroída e naftalínica. Chegou na aspereza da noite sem ser convidada e assentou-se no canto exalando as perplexidades dos olhares dos outros. Ela, emanada da irmã louca, trazida sem conseqüências avaliadas, carregada como o despudor sem escrúpulos. As desculpas para trazer-lhe àquela hora da noite foram insuficientes e incompletas. Havia a água, havia os produtos, e havia as mãos: mas havia um cansaço, egoísta, egocêntrico, que não enxerga além do próprio pêlo escuro, e a insensatez, mas desta não se fala em voz alta, pois ela persegue seus invocadores. Por isso silenciemos, assim como a anfitriã.

Nesse meio tempo, as roupas apodreciam na plasticidade azul.

Fora-se a irmã, ficara a intrusa e seus odores de mulheres. Ficara o flagelo corrompido que mesmo tão ébrio de si mesmo e imploroso ainda possuía um tom sarcástico que a anfitriã não queria reconhecer. Um olhar que ela sentia desde que fora morar com a velha. E desde esse dia ela não era mais ela mesma.

E ela senta-se.

Dois olhos fatigados sentados no sofá e dois botões de ametista a cintilar por detrás do plástico: todos em igualitária correspondência, reciprocidades que não cabem em linhas. Os olhos, assim como as roupas, imploravam sedentos por água. As roupas, assim como os olhos, exalavam o cheiro de um dia no corpo de outrem.

As duas mortas vivendo de olhos abertos, mortas nos corpos dos outros, mortas nos cheiros nos amassos, nos rasgões e na ausência de traços característicos na carne de seda e nos fiapos. Ambas se observando mutuamente. Um momento ela teria de levantar, um momento deveria pegar os olhos de ametista e liberta-los de seu cárcere asfixiante, um momento ela deveria fazer o que a outra não fizera em sua estadia ridiculamente frustrante. Ela, a anfitriã, quando ela o fizesse, estaria livre de um fardo, e preso a outro. Facas de dois gumes. E o fio de sangue já corria.

E agora ali, na escuridão da noite, antes do som das revoluções liquidas, não havia mais uma mulher, nem ali mais uma roupa. Eram ambas trouxas: uma em seu amontoado, outra em sua ingenuidade.

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