quinta-feira, 10 de julho de 2008

O fio

- Acho que este fio de cabelo está maior que os demais, não acha Clarice? Este aqui atrás da nuca, percebe? Pois foi culpa do cabeleireiro, o Jorge, lembra do Jorge? Alto, moreno, barba feita, homem esplêndido o Jorge, exceto quando deixa aquele cavanhaque crescer, cruzes parece um cantor de brega, breguíssimo o Jorge de cavanhaque. Mas ele não estava de cavanhaque, estava arrumado hoje sabe. Mas estava meio, meio assim, meu Deus eu odeio quando eu estou com a palavra na ponta da língua e depois esqueço, acho isso horrível. Mais horrível ainda é dizer isso que acabei de dizer de ter as coisas na ponta da língua, se estivesse na ponta da língua num dava pra falar, ia impossibilitar a fala da pessoa. Eu sei que é modo de falar mas você sabe... Credo, um rato. Clarice um rato! Jesus que coisa nojenta que coisa absurda, meu deus não limpam esse lugar nunca! Credo mil vezes credo! Eu pago tantas taxas pra a prefeitura pra quê? Pra quê meu Deus do céu? Pra ver um rato? Que absurdo, absurdo. Meu Deus esqueci até do estava falando, você lembra? Ah sim do cavanhaque do Jorge. É um cavanhaque horrível. Mas assim, ele é um rapaz legal, um moço simpático, meio afeminado, mas não acredito que seja gay não sabe Clarice? Até por quê tem uma filhinha linda o Jorge, uma menina doce vem todos os dias conversar comigo me fazer companhia enquanto faço as unhas das mãos ou dos pés ou hidrato os cabelos, uma graça a menina, vive me chamando Tia Déla. Num sabe que meu nome é Maria Adelaide, se soubesse chamava Maria. Mas sim, o cabelo, minha filha que infelicidade estava hoje o rapaz, os olhos cansados as mãos suadas... tão suadas que chegou a cair um pingo na minha testa, você não sabe como fiquei horrorizada, horrorizada, anti-higiênico, mas ele pediu desculpas, lógico, vai lá querer perder a freguesa? Mas estava horrível o menino. Eu soube pela Luiza, a prima da Luane... A Luane sua amiga aquela do cabelão ruivo enorme o cabelão ruivo da Luane, pois bem, soube dela, da Luiza não da Luane, soube que aconteceu algo horrível com a namorada do rapaz. Ela estava caminhando na rua lá pelas seis e meia, já pensou caminhar seis e meia nessa cidade sozinha, quase anoitecendo, deus que me livre eu vou logo me apressar pra não sair daqui seis e meia. Se bem que aqui dentro não tem problema né, a gente tem que ter medo do povo lá fora sabe? Vi ontem no noticiário das sete que uma menina foi estuprada à dois quarteirões da casa da minha mãe. Fiquei horrorizada, horrorizada mesmo, mandei até a velha vir morar comigo mas é uma pestilenta que acha que minha casa consegue ser mais pestilenta que ela. Cruzes pois a menina foi assassinada acredita? A menina que digo a namorada do Jorge meu cabeleireiro que tem a filha doce e deixou um fio maior na minha nuca, num é a menina estuprada não. Pois era por isso que o Jorge tava tão mal. Perdeu duas mulheres em um ano, viu que coisa? Pois é, eu soube que ela foi enterrada no cemitério particular, privado sei lá como se chama. Frescura não acha não? Não tive que pagar um tostão pro teu enterro Clarice, mas isso não significa que eu não te ame. Você sabe disso não é meu anjo? Bem, vou indo que tenho que aparar esse... esse bento desse fio, aqui. Fio miserável... Oh cabelereiro... Oh Fio... Aff... Bem... até... até a próxima terça então não é meu bem?... É... Até... até a próxima terça... terça-feira... próxima terça feira.

E se distanciou lentamente até virar-se por completo e o som dos passos rápidos e descompassados ecoar pelo silêncio das folhas secas.

domingo, 6 de julho de 2008

Quando as formigas epifanizam.

A formiga veio da reentrância, assim como todas as outras. Como todas as outras pálida e insubstancial. Revelava-se nua em sua transparência e na ausência de movimentos frenéticos nas patas anoréxicas. Transpirava um suor de formiga, fino e vermelho, e essa materialidade líquida de seus poros a impedia de pender para a inexistência: a suprema constante teleológica da formiga.

No inconformismo que é a consciência da própria materialidade, a formiga prosseguiu em sua jornada diária através das migalhas alheias. Sua vida sempre fora de certa maneira a mesma e ela jamais reclamara em sua língua de formiga: não seria ouvida no mar revoluto de irmãs canibais. Além do que, desde sempre soube que o silêncio é mãe das criaturas desgraçadas, e se não quisesse perecer nas circunvoluções de seu próprio habitat deveria ouvir os conselhos mudos dessa maternidade entorpecida de pensamentos corrompidos.

Depois da estaticidade momentânea causada pela consciência da corruptibilidade de seu pensamento a formiga alcançou o solo infértil de azulejos amarelos. E ao desaparecer na palidez do solo, sentiu-se maravilhosa por deixar de ser formiga e elevar-se ao status de azulejo. E ela não sabia o que era ser azulejo, mas preferia a estabilidade daquela existência à insegurança de suas seis pernas anoréxicas.

A formiga agora voltada em azulejo sentia mais de perto o cheiro doce do destino incondicional. O paraíso em rejuntes envelhecidos e açucarados. A formiga-azulejo adentrou os rejuntes açucarados e saboreou gulosa cada uma das partículas. E sentiu entrar em seu corpo a saliva adocicada . Insatisfeita avançou em pedaços maiores e maiores até saborear o que ela definiria posteriormente como a fluência insípida de um alheio.

No instante ela só pensou que aquilo não satisfazia suas necessidades e afastou-se, mas ao afastar-se viu com seus olhos de formiga seus lábios de formiga vermelhos como suores muitíssimos. E incompreendendo aquela situação voltou-se novamente para a fonte insípida e percebeu que a substância avançara. Ela não conhecia aquilo. Em toda sua vida de formiga nunca bebera de algo semelhante que se movimentasse. Algo, vivo.. E enquanto refletia, via aquela vermelhidão espelhada corroendo tudo, todo o significante amarelo. Todo o azulejo. Ela própria. Ela não deixara de ser azulejo, porque estava manchada, assim como ele, mas não queria estar manchada. Já o fora a vida toda com o estigma de formiga. Mais um passo para trás. A vida toda ridicularizada por pertencer a uma classe sem regalias. Outro passo. Sem sequer ter o direito de ser chamada classe. Seus pés molharam-se do vermelho. E com medo de afogar-se ela correu desgovernada. Os olhos de formiga cerrados como janelas tempestuosas. A aceleração ininterrupta. Os suores muitíssimos escorrendo. A imprecisão. Os olhos abertos. Os olhos alheios. Os olhos azuis.

Deveria sentir que deveria fugir. Mas não sentiu coisa alguma. Deveria ao menos apavorar-se. Mas os olhos alheios lhe pediam calma. No reflexo dos olhos negros da formiga, dois olhos azuis, humanos como as criaturas desse mundo, inexistentes como a formiga no azulejo amarelo. Duas criaturas inexistentes a encarar-se mutuamente. Os olhares e as reciprocidades indizíveis. Mas apenas uma compreendeu os olhos da outra.

E a formiga assumiu a morte dos olhos alheios e chorou uma lágrima que não podia ser dela. Mas foi.

A formiga não via sentido no que os sentidos lhe indicavam. Não conseguia compreender como sua felicidade instantânea pôde estar próximo da inexistência de outro. Será que o outro queria a inexistência almejada pela formiga? Será que ele mesmo fez aquilo consigo mesmo? A formiga não entendia. E por incompreender como seu desejo se tornara a realidade do alheio a formiga buscou uma explicação e refletiu assumindo que seu destino estava vinculado à morte daquele alheio. Que de alguma maneira obscura ela era responsável pelo acontecido. E a única resposta que lhe ocorria é que o alheio fora amaldiçoado por ela abandonar o seu status de formiga . E essa era a maldição da formiga: ela não poderia ser inexistente, às custas da inexistência dos outros.

Na ocorrência do fato, formiga arrefeceu.

Não agüentava mais olhar para o seu próprio rosto de formiga refletido nos vitrais azulados.

Ela deu meia volta, limpou a boca vermelha e carregou uma partícula açucarada nas costas retornando para a begidez da parede. Ela permaneceu calada, confusa, perplexa. Inequilibrável nas patas anoréxicas agora ainda mais finas. E por fim, sem reconhecer o caminho adentrou na reentrância obscura.

Nesse dia, com sentimentos de culpa revoluteante, a formiga prometeu que nunca mais abandonaria seu status de formiga no azulejo amarelo, para que os seres alheios não mais abandonassem o status de existentes. E ao retirar de si sua felicidade diária, a formiga entregou-se à sua mãe muda e bastarda. Definitivamente.

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Nota do Autor

Aos iniciados gostaria de indicar alguns dos meus textos favoritos: Ensaio sobre o desespero, Isadora, A gôta, Os petrificados, Mariposas no Caos, Por detrás de um vestido branco, O baobá, Palhaço, Alicia, Ópio, Another day close to Paradise, As Trouxas e A violinista tem os pés descalços.
Desde já agradecido pela apreciação e pelos comentários.
Mário da Mata