domingo, 30 de novembro de 2008

As tempestades

Quando o pequeno Samuel saiu pelas alamedas contando obsessivo as camélias desabrochadas, dir-se-ia que anunciava os desarranjos do fim do mundo. Suas pernas tentavam executar propriamente o passo que, se ao certo não saía, em nada se devia a falta de vontade, mas sim, aos maus hábitos da esquerda: pois que tendia a mancar a ingrata.
Esse jeito desengonçado de andar se ampliava na aceleração do passo, tornando cada movimento um constante e angustiante vir-a-ser no chão de paralelepípedos. E essa constância assombrava os vizinhos, que o viam saltar entre as valas sem se importar com a precipitação de seu corpo sobre o infinito escuro.
Eis que ele não temia a precipitação das coisas.
E nessa pressa irrefletida, Samuel prosseguia cambaleante em um desabamento de si mesmo. Seu deslocamento desarticulado o impedia de olhar por sobre os telhados, onde o céu se anunciava em um enorme revertério. As nuvens opacas se aconchegavam na premissa de uma tormenta que antes de se fazer completa exibia-se em suas potencialidades. A tempestade e sua arrebentação. Esse estado de eterna revolução das coisas atmosféricas.
Samuel, todavia, em nada aparentava realizar a tempestade. Todas aquelas perturbações celestes ele absorvia como conseqüência de sua própria instabilidade. Na imersão de seu mundo fantasioso, o trovão ruidoso era o grito angustiado de uma alma cativa, as árvores chacoalhavam em despedida, mas o vento... o vento era uma criatura absurda.
Ele não confiava naquela manifestação invisível da natureza. Para ele a concreticidade do vento era tão abstrata que só se satisfazia de compreensão por ele mesmo. O vento só podia ser compreendido pela sua própria natureza fluida, livre e com ânsias de se atirar dos precipícios. Somente um ser de igual conformidade poderia compreendê-lo. E este ser ainda não existia.
Apesar da constatação da unicidade e singularidade do vento, Samuel não parecia estremecer por tal juízo. Na realidade, seu maior medo não se vinculava à essência do vento, mas sim, à suas palavras obscuras ditas naqueles sons sussurrantes. Pois que o vento detinha em sua estrutura as vozes cacófonas do mundo. E o mundo, era uma instância da crueldade humana só que servida em um prato mais gélido.
Ao perceber as confissões que lhe adviriam, pois o vento não podia se calar perante tudo que absorvia e alguma hora iria tudo proclamar aos ouvidos de um transeunte, Samuel percebeu-se sozinho. No meio de uma grande praça de frente ao mirante e seu horizonte acimentado, viu portas, janelas e cadeados, todos em pleno encarceramento.
O mundo havia parado para ver a tempestade passar.
No meio da praça, isolado, viu ao longe no marrom dos telhados movimentações incomuns de telhas e grades: tudo sendo arrastado. E ele, um espectador passivo não podia parar de pensar se aquele povo também não lhe culparia por isso.
Ele o farrapado, a criança órfã e destrutiva. Ele o contador de camélias desabrochadas, que vivia da boa vontade das mulheres viúvas. Elas que o adotavam por alguns dias e depois o largavam como um cachorro sarnento. Há de se enjoar com aquele passo. Ele e sua culpabilidade por tudo. Como se o mundo todo lhe dissesse que por nascer daquele jeito podia ser submetido às conseqüências dos outros. Mas a culpa, ele sabia, não era dele. Era a tempestade que queria o culpar. Mas ninguém iria acreditar na fala de uma criança louca cujos pensamentos são tão disformes quanto seu corpo e suas pernas. Ninguém acreditaria que a tempestade está-lo-ia usando como a um boneco desengonçado. Um títere nas mãos do titereiro divino.
Não se sabe ao certo se seria Samuel já incitado pelo vento ou suas revoluções internas que o tomavam, mas ele havia decidido. Não mais permitiria sua culpabilidade efervesceste. Não mais o impediriam de saltar por sobre as valas, não mais deixaria a casa de uma senhora idosa em razão do brinquedo ter vindo quebrado. A natureza não mais aceitaria essa devolução. E tomado de um estranho sentimento de desabamento, sentiu-se oscilante como uma casa de estrutura frágil, e na frente do horizonte ouvia o vento e o compreendia. Eles teriam a mesma natureza, e finalmente, Samuel poderia sentir o sabor daquele absurdo. Ele seria irreprimível.
Quando o pequeno Samuel saiu pelas alamedas contando obsessivo as camélias desabrochadas, dir-se-ia que anunciava os desarranjos do fim do mundo.

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Uma reflexão sobre o mundo

− E então?
− Bem... Se o mundo pudesse ser simplificado nos termos coisificados da palavra simbólica eu diria que o mundo é um aglomerado de coisa alguma que se finge ser algo para ter reconhecimento dos órgãos superiores. Os órgãos superiores por sua vez seriam outros aglomerados de coisas que não sustentam coisa alguma mas que fingem tão bem que chegaram a ser considerados reais (e por isso superiores), mesmo no seu fingimento. O real da coisa por outro lado é algo muito individual, porque no fim mesmo não existe real coletivo para contrastar com esse real que é real mesmo. Existem as coisas abstratas e as coisas materiais e o homem é uma coisa real enquanto abstrato e enquanto real e enquanto existente. Acima de tudo existente. Porque veja bem: se o homem não existe não existe real. Existem coisas cuja existência não podem ser confirmadas porque não existem seres humanos que as confirmem. Se uma árvore cai no meio da floresta, como ter certeza de que ela caiu se ninguém ouviu o estrondo dos exoesqueletos das formigas rompendo-se no chão de folhas mofadas? Isso necessitaria de um ser humano que existisse, e que, além de existir, estivesse presente de alguma forma. Nem que fosse só por um instante. Nem que fosse por um instante inteiro. Nem que fosse um entomólogo.
Então, se o mundo acaba-se, ainda existiria real? Ou melhor, se o ser humano acabasse ainda existiria real? Acredito que não. Se existisse, ninguém poderia saber e confirmar. E o fim do mundo seria esse fim dos outros que não somos nós mas são humanos. E de nós também se nos colocarmos como raça de indigentes que falam e fazem coisas inventadas por nós em cima de uma realidade também inventada por nós para alcançarmos metas e objetivos inventados por nós. Por isso, para mim, o mundo é uma grande invenção e nós somos todos inventores de coisas novas com significados diversos para encobrir a desnecessidade de estarmos permanentemente inventando essas mesmas coisas. Por isso eu parei de inventar. Virei revolucionário. Virei anarquista! Virei...
− Inventor.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

A pequena morte

Quando amanheceu o dia, se deu conta de que estava perturbada. A natureza da noite dava proporções estranhas aos acontecimentos anteriores de modo que o despertar era uma rememoração hiperbólica das vivências de poucas horas. Horas que passaram circunvoluteando nos pensamentos e nas idéias, horas e mais horas tendo pesadelos na desperção azul.
Antes da hora ela teve de reprimir desejos irreprimíveis e isso a tornava desesperadamente humana. Uma humanidade de si mesma. Todavia, já não é das eras atuais a impermanência das coisas apreendidas e sem dúvida algumas sabe-se sua fuga pelos poros. Pelos poros saídos a essência humana represada.
O medo que lhe tomava na consciência das coisas desperta era que sua humanidade se esvaísse por inteiro e não mais voltasse. E esse medo contagiava seus pêlos e ela temia por sua desumanidade permanente. Por isso desejava dos outros as essências humanas. Na pele, nos braços, nas pernas, nos lábios. Desejava em cada mordida, arrancar um pedaço de gente, de ser, de vida. De humanidade latejante.
Queria de volta toda a humanidade extravasada, e naquela manhã perturbada, ela desejou morder o alheio.
Ininterruptamente.

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Como se faz poesia em dois

Dois momentos distintos, distantes
Dois segundos alterna-os num verso
Dois destinos comuns, é certo

A dualidade e seu compasso (des)conserto
Da aquarela retira vida movimento
E do movimento atiras luz ao pensamento

É do sonho que lhe tomam as idéias
Que escreves no papel à tua frente
Vês no traço passo laço pro infinito
Envolvendo estrelas nuas nas palavras do vazio

O que buscas não é amor ou sofrimento
É a conclusão do momento, o escrito
Faz do ponto seguro porto de sentidos
E dos sentidos, todos os seus instantes.

Faz da alma alegria cristalina
Transparecendo seus mais profundos desejos
Toma posse de sua pena e declina
– no mar suave de linhas transbordantes –
Não só a vida, de alheio dono
Como o que lhe é alheio em sua própria vida



Laís Leite / Mário da Mata

domingo, 14 de setembro de 2008

Promessa

Dê-me o desconcerto de uma hora
Que faço de um mero segundo,

nossa eternidade.

sábado, 13 de setembro de 2008

Saudades

Teus olhos cinza cimento
Incrustados na tez da calçada
Meus lábios de amores sedentos
Implorando o fim da estrada

Devaneio Hilarioso

O gato mia
O cachorro, late.
Alguém já se perguntou o que faz o abacate?

O pulo

pernas pro ar:
pulou mais um,





do sexto andar.

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Catástrofe

Dizia que o tempo não tem idade
Pois tinha a idade do tempo
Queria do tempo a eternidade:
Morreu de tempo: tempestade.

sábado, 30 de agosto de 2008

Havia algo mais do que pedras no meio do caminho

Em contato com o asfalto quente a pele da cachorra soltou um grito de rasgo e o carro em um solavanco arriou no gemido da descompassada ambulante.. Na primeira roda formou-se um revertério de patas entrelaçadas-dismorfizadas-uma-por-cima-da-outra como uma contorcionista acidentada que no meio do palco se desmonta e as mãos rolam para a platéia. No meio termo entre a primeira e a segunda roda a massa de patas assa no maquinário do carro e a cachorra sente o cheiro da carne frita no aço e sente fome. Uma fome canibalesca de comer-se a si própria no tempo convulso para , pelo menos, não morrer de barriga vazia.

Mas a fome dá espaço a um sentimento mais profundo e sem nome que as pessoas teimam em chamar compaixão por faltar de nome e explicação, e aí nesse momento já não sei se sou eu ou a cachorra ou a sintonia de nossas cabeças mas surgiu, sem se ver ou notar, o medo nos olhos da motorista. E o medo era sentindo nos ossos expostos dos braços da bicha e nos meus olhos expostos aos cacos da cena. E era um medo maravilhoso, cheio de luz. E ela devia ter os olhos arregalados como o da vítima, e os braços paralisados, sim, assim também como da vítima, como a assassina, como de todos presentes, como eu e minha pressa em atravessara rua.

Mas não pude ver no decorrer da cena o último golpe da homicida, a segunda roda e a explosão definitiva. Meus olhos se fecharam e eu só pude pensar que naquela segunda feira eu vi a morte olhar nos meus olhos pelos olhos de uma cachorra.

O freio rangeu e a cachorra ainda gemia quando abri os meus olhos rangidos. E ela me olhou e quis dizer algo. Sua última palavra em seu último suspiro. Fez todo um esforço com as patas trêmulas para abrir a boca. E não diferir nada.

A homicida arregalou os olhos e olhou para trás logo depois de sentir na sinfonia do freio a ladroagem da ferida da rodovia. Mas ao sair do carro mais ferida ali não havia. Havia um coração espatifado na avenida. E seu coração se espatifou pela expressão que se via em seus olhos pelos meus olhos e pelo da cachorra. E esse espatifamento que pode ser tanto humano como um atropelamento manteve-a fora de si por um breve momento e em um desepero de braços agitando ela correu em direção à poça vermelha e se agachou no basalto negro balançando a cabeça.

Nesse dia, escrevi no diário que tomei uma soda, vesti uma bermuda e vi uma cachorra morta ser beijada pela assassina.

sábado, 16 de agosto de 2008

A ânsia (Quando as coisas se tornam humanas)

"Os olhos ainda eram cerrados quando se deu conta de que, naquela hora, elas estariam fazendo coisas no teto do quarto".

(...)

Quando abriu os olhos soube-as solitárias, descrevendo círculos imaginários na imensidão branca. E sentiu compaixão por aqueles seres desnorteados que em si mesmas esbarravam, provocando nos olhos invadidos pelo novo dia, a sensação de que o mundo todo acordava.

E eis que o mundo estava ébrio.

Na embriaguez do mundo, a manhã era uma cortina branca de seda encobrindo a janela. Nessa cortina se contavam os dias em um horário próprio que diferia enormemente do horário do mundo lá fora. Porque o mundo lá fora agora não existia e a hora, a hora tornava-se, então, um conceito obsoleto.

E na ausência da hora e do mundo observava, enquanto as circunvoluções se faziam mais constantes no silêncio compacto do ambiente. E podia ouvir a distância das asas e do teto no sibilar único da batida do coração de um lepidóptero. As batidas ritmadas do coração de um lepidóptero.

Quando criança, a mãe dizia-as crepusculares petulantes e em compulsões assassinas de matriarca neurótica, espalhava inseticida pelos quatro mil cantos da casa. Na manhã do dia seguinte acordavam tapetes de asas de seda e pisava sentindo nos pés nus a crueldade humana adentrando pelos poros. E a criança sentiu pela primeira vez o outro lado da humanidade. A humanidade plena.

Naquele momento, com os olhos e a cama, lembrou-se das asas espalhadas no chão e o encontro dos pés com as cascas secas das vítimas de sua mãe e lhe ocorreu por um instante um desejo súbito, indesejável, mas irreprimível. Sua boca abriu-se lentamente como que para pedir socorro do sentimento de humanidade que lhe tomava e sentiu formigas queimando na ponta da língua. Seus olhos se ampliaram de modo que as órbitas entraram em colapso e soube-as prestes a extrapolar os ossos. Seus pulmões encheram-se de líquidos atmosféricos e num processo de explosão reprimida tremeu as pontas dos dedos, distônicos:

E tudo parou.

Tudo parou como que predizendo algo extraordinário. Tudo parou como o silêncio que precede o extraordinário. O momento antes da tempestade e o momento antes desse momento. Tudo era antes para que se adiasse ao mais ínfimo instante o processo desencadeado pela radioatividade humana e seu forno-radioativo-emocional. E isso, sabia, provocaria grandes perturbações no céu branco.

Mas todos os momentos são repletos de falhas, e uma delas, é que ele termina.

Prevendo o desaparecimento da constância inerte em que se encontrava tomou a decisão de tomar uma atitude e decididiu-se a se decidir pulando repentinamente em direção ao teto. Sentiu o vento inerte movimentando seu corpo. Seus músculos adormecidos, sua boca aberta se enchendo de ar, e uma queda desproposital enquanto as cascas de seda ainda vivas se refugiavam nos outros cantos do céu provisório.

E na queda, não sentiu nada. Só a dor de saber que do chão, não passaria.

Com sentimentos de humilhação e incompreensão perfurantes, se levantou do chão bruto. Ficou estanque no quarto. Não ouviu gritos. Todos dormiam. Ninguém jamais saberia de nada. Mas sabia. Sabia o que ia fazer. Sabia do seu plano sórdido. Sabia de que agora em diante não poderiam coexistir na mesma casa. Alguém tinha de ir. Tentaria de novo, mas não pôde. Não podia. Era frágil como uma casca, que caída no chão, se esfacelara. Não mais atentaria contra as donas das cortinas de seda branca e em conformismo correu em descompasso desaparecendo nos corrimões da escada.

Porque no fundo, sempre soube: tinha ânsia por comer mariposas.

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Tributo à estrela desaparecida


Hoje ninguém sabe a estrela.

Não, ninguém sabe.

Não se sabe sua procedência nem sua magnificência,

Pois a estrela em sua essência é desconhecida dela mesma.

Ela e seus braços raios de luz,

Ela e seu brilho de sombra esquecida no canto celeste, escuro.


Hoje ninguém sabe a estrela.

Ninguém sabe seu rastro ou seu paradeiro.

Só se vê no horizonte um reflexo, um espelho.

Daquela estrela que nunca foi vista.


Porque ninguém viu a estrela.

Nem os outros,

Nem ela mesma.


E hoje era estrela.

E hoje é um rastro,

Um brilho, um traço remoto na atmosfera.


Porque não há mais estrela,

Nem sequer sua explosão.

Hoje a estrela explodida caminha perdida em direção aos nossos olhos sedentos de luz.

Mesmo quando não existe luz.

Mesmo quando os olhos são apenas olhos perdidos.

Mesmo quando os raios só atingem a terra seca.

E a estrela nunca vista,

Se derrama esquecida,

Na frialdade do chão.


Hoje, ninguém sabe a estrela.

E meus olhos permanecem perdidos

Esperando uma gota de luz.

quinta-feira, 10 de julho de 2008

O fio

- Acho que este fio de cabelo está maior que os demais, não acha Clarice? Este aqui atrás da nuca, percebe? Pois foi culpa do cabeleireiro, o Jorge, lembra do Jorge? Alto, moreno, barba feita, homem esplêndido o Jorge, exceto quando deixa aquele cavanhaque crescer, cruzes parece um cantor de brega, breguíssimo o Jorge de cavanhaque. Mas ele não estava de cavanhaque, estava arrumado hoje sabe. Mas estava meio, meio assim, meu Deus eu odeio quando eu estou com a palavra na ponta da língua e depois esqueço, acho isso horrível. Mais horrível ainda é dizer isso que acabei de dizer de ter as coisas na ponta da língua, se estivesse na ponta da língua num dava pra falar, ia impossibilitar a fala da pessoa. Eu sei que é modo de falar mas você sabe... Credo, um rato. Clarice um rato! Jesus que coisa nojenta que coisa absurda, meu deus não limpam esse lugar nunca! Credo mil vezes credo! Eu pago tantas taxas pra a prefeitura pra quê? Pra quê meu Deus do céu? Pra ver um rato? Que absurdo, absurdo. Meu Deus esqueci até do estava falando, você lembra? Ah sim do cavanhaque do Jorge. É um cavanhaque horrível. Mas assim, ele é um rapaz legal, um moço simpático, meio afeminado, mas não acredito que seja gay não sabe Clarice? Até por quê tem uma filhinha linda o Jorge, uma menina doce vem todos os dias conversar comigo me fazer companhia enquanto faço as unhas das mãos ou dos pés ou hidrato os cabelos, uma graça a menina, vive me chamando Tia Déla. Num sabe que meu nome é Maria Adelaide, se soubesse chamava Maria. Mas sim, o cabelo, minha filha que infelicidade estava hoje o rapaz, os olhos cansados as mãos suadas... tão suadas que chegou a cair um pingo na minha testa, você não sabe como fiquei horrorizada, horrorizada, anti-higiênico, mas ele pediu desculpas, lógico, vai lá querer perder a freguesa? Mas estava horrível o menino. Eu soube pela Luiza, a prima da Luane... A Luane sua amiga aquela do cabelão ruivo enorme o cabelão ruivo da Luane, pois bem, soube dela, da Luiza não da Luane, soube que aconteceu algo horrível com a namorada do rapaz. Ela estava caminhando na rua lá pelas seis e meia, já pensou caminhar seis e meia nessa cidade sozinha, quase anoitecendo, deus que me livre eu vou logo me apressar pra não sair daqui seis e meia. Se bem que aqui dentro não tem problema né, a gente tem que ter medo do povo lá fora sabe? Vi ontem no noticiário das sete que uma menina foi estuprada à dois quarteirões da casa da minha mãe. Fiquei horrorizada, horrorizada mesmo, mandei até a velha vir morar comigo mas é uma pestilenta que acha que minha casa consegue ser mais pestilenta que ela. Cruzes pois a menina foi assassinada acredita? A menina que digo a namorada do Jorge meu cabeleireiro que tem a filha doce e deixou um fio maior na minha nuca, num é a menina estuprada não. Pois era por isso que o Jorge tava tão mal. Perdeu duas mulheres em um ano, viu que coisa? Pois é, eu soube que ela foi enterrada no cemitério particular, privado sei lá como se chama. Frescura não acha não? Não tive que pagar um tostão pro teu enterro Clarice, mas isso não significa que eu não te ame. Você sabe disso não é meu anjo? Bem, vou indo que tenho que aparar esse... esse bento desse fio, aqui. Fio miserável... Oh cabelereiro... Oh Fio... Aff... Bem... até... até a próxima terça então não é meu bem?... É... Até... até a próxima terça... terça-feira... próxima terça feira.

E se distanciou lentamente até virar-se por completo e o som dos passos rápidos e descompassados ecoar pelo silêncio das folhas secas.

domingo, 6 de julho de 2008

Quando as formigas epifanizam.

A formiga veio da reentrância, assim como todas as outras. Como todas as outras pálida e insubstancial. Revelava-se nua em sua transparência e na ausência de movimentos frenéticos nas patas anoréxicas. Transpirava um suor de formiga, fino e vermelho, e essa materialidade líquida de seus poros a impedia de pender para a inexistência: a suprema constante teleológica da formiga.

No inconformismo que é a consciência da própria materialidade, a formiga prosseguiu em sua jornada diária através das migalhas alheias. Sua vida sempre fora de certa maneira a mesma e ela jamais reclamara em sua língua de formiga: não seria ouvida no mar revoluto de irmãs canibais. Além do que, desde sempre soube que o silêncio é mãe das criaturas desgraçadas, e se não quisesse perecer nas circunvoluções de seu próprio habitat deveria ouvir os conselhos mudos dessa maternidade entorpecida de pensamentos corrompidos.

Depois da estaticidade momentânea causada pela consciência da corruptibilidade de seu pensamento a formiga alcançou o solo infértil de azulejos amarelos. E ao desaparecer na palidez do solo, sentiu-se maravilhosa por deixar de ser formiga e elevar-se ao status de azulejo. E ela não sabia o que era ser azulejo, mas preferia a estabilidade daquela existência à insegurança de suas seis pernas anoréxicas.

A formiga agora voltada em azulejo sentia mais de perto o cheiro doce do destino incondicional. O paraíso em rejuntes envelhecidos e açucarados. A formiga-azulejo adentrou os rejuntes açucarados e saboreou gulosa cada uma das partículas. E sentiu entrar em seu corpo a saliva adocicada . Insatisfeita avançou em pedaços maiores e maiores até saborear o que ela definiria posteriormente como a fluência insípida de um alheio.

No instante ela só pensou que aquilo não satisfazia suas necessidades e afastou-se, mas ao afastar-se viu com seus olhos de formiga seus lábios de formiga vermelhos como suores muitíssimos. E incompreendendo aquela situação voltou-se novamente para a fonte insípida e percebeu que a substância avançara. Ela não conhecia aquilo. Em toda sua vida de formiga nunca bebera de algo semelhante que se movimentasse. Algo, vivo.. E enquanto refletia, via aquela vermelhidão espelhada corroendo tudo, todo o significante amarelo. Todo o azulejo. Ela própria. Ela não deixara de ser azulejo, porque estava manchada, assim como ele, mas não queria estar manchada. Já o fora a vida toda com o estigma de formiga. Mais um passo para trás. A vida toda ridicularizada por pertencer a uma classe sem regalias. Outro passo. Sem sequer ter o direito de ser chamada classe. Seus pés molharam-se do vermelho. E com medo de afogar-se ela correu desgovernada. Os olhos de formiga cerrados como janelas tempestuosas. A aceleração ininterrupta. Os suores muitíssimos escorrendo. A imprecisão. Os olhos abertos. Os olhos alheios. Os olhos azuis.

Deveria sentir que deveria fugir. Mas não sentiu coisa alguma. Deveria ao menos apavorar-se. Mas os olhos alheios lhe pediam calma. No reflexo dos olhos negros da formiga, dois olhos azuis, humanos como as criaturas desse mundo, inexistentes como a formiga no azulejo amarelo. Duas criaturas inexistentes a encarar-se mutuamente. Os olhares e as reciprocidades indizíveis. Mas apenas uma compreendeu os olhos da outra.

E a formiga assumiu a morte dos olhos alheios e chorou uma lágrima que não podia ser dela. Mas foi.

A formiga não via sentido no que os sentidos lhe indicavam. Não conseguia compreender como sua felicidade instantânea pôde estar próximo da inexistência de outro. Será que o outro queria a inexistência almejada pela formiga? Será que ele mesmo fez aquilo consigo mesmo? A formiga não entendia. E por incompreender como seu desejo se tornara a realidade do alheio a formiga buscou uma explicação e refletiu assumindo que seu destino estava vinculado à morte daquele alheio. Que de alguma maneira obscura ela era responsável pelo acontecido. E a única resposta que lhe ocorria é que o alheio fora amaldiçoado por ela abandonar o seu status de formiga . E essa era a maldição da formiga: ela não poderia ser inexistente, às custas da inexistência dos outros.

Na ocorrência do fato, formiga arrefeceu.

Não agüentava mais olhar para o seu próprio rosto de formiga refletido nos vitrais azulados.

Ela deu meia volta, limpou a boca vermelha e carregou uma partícula açucarada nas costas retornando para a begidez da parede. Ela permaneceu calada, confusa, perplexa. Inequilibrável nas patas anoréxicas agora ainda mais finas. E por fim, sem reconhecer o caminho adentrou na reentrância obscura.

Nesse dia, com sentimentos de culpa revoluteante, a formiga prometeu que nunca mais abandonaria seu status de formiga no azulejo amarelo, para que os seres alheios não mais abandonassem o status de existentes. E ao retirar de si sua felicidade diária, a formiga entregou-se à sua mãe muda e bastarda. Definitivamente.

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Nota do Autor

Aos iniciados gostaria de indicar alguns dos meus textos favoritos: Ensaio sobre o desespero, Isadora, A gôta, Os petrificados, Mariposas no Caos, Por detrás de um vestido branco, O baobá, Palhaço, Alicia, Ópio, Another day close to Paradise, As Trouxas e A violinista tem os pés descalços.
Desde já agradecido pela apreciação e pelos comentários.
Mário da Mata

domingo, 29 de junho de 2008

Pequena Publicação Medíocre das Relações Humanas e do Desaparecimento dos Seres Alheios ou, simplesmente, O Sumiço


Olha essa parede, esse vão branco

Olha esses dedos de cetim

Olha para menina no assoalho

Vertendo lágrimas sem fim

Ela a vaporosa dama alva

Os olhos esmeraldas afiadas

Murchando nas teias invisíveis

Das belezas namoradas

Ela olha a primavera vindo em cânticos

Os seus joelhos a nos tocar

Sentindo na pele o mundo aos poucos

Fazer a meia volta e flutuar

E porque continuas encolhida

Na avenida de minha vida?

A sua voz ecoa livre

Mas suas pernas estão presas no ar

Volve a noite minha querida

Seu coração em feridas está

Volve o dia e a menina

Que ali jazia

Não há

Desapareceu na sombra do medo de amar

domingo, 8 de junho de 2008

A violinista tem os pés descalços.


O vento arrefecia o azul das sapatilhas de seda e envolvia com seus fios invisíveis o vestido rendado da violinista, movimentando-o no suave embalo das brisas ancestrais. Em seu braço esquerdo sustentava ela seu instrumento e seus acordes sonolentos na manhã orvalhada. Com o braço direito, sustenta a vida na delicadeza de uma folha verde já levemente corroída pela ação das intempéries. E ela, a violinista, era sustentada pelo tempo nas horas divagadas.

Quando seus olhos abriram para a imensidão da planície ela viu, cheia de inquietude permanente, a diferenciação das coisas e suas infinitudes, os rebuscados simplismos da natureza nua. As inconsistências concretas, a beleza do grotesco e o grotesco da beleza. O avesso das coisas em seus avessos mais revirados. E ela ao avesso com a incompreensão do mundo. Ela a violinista, acabara de tomar ciência de sua existência fatídica na resposta monossilábica da planície. E nessa resposta, quebrou-se em cacos a máscara de mulher in persona e a violinista tornou-se ela mesma.

Soltou-se o violino e a folha, cintilou a gota que armazenara silenciosa na mão alheia. E na terra ela foi bebida com o sabor ambrosíaco pelas raízes das árvores. Tão singelo quanto respirar. A violinista agora sem amparos corria em direção ao riacho com os cabelos castanhos e despenteados a revolutear na nuca perfeita. Toda ela na sua música, no seu som, no seu ritmo. Tudo em um só instante que se transpassado duraria anos. Tudo para um salto onde as sapatilhas se desprenderiam da (in)sanidade momentânea e permaneceriam na grama úmida. Tudo para o salto da violinista. Tudo para os pés tocarem a superfície calma e estável da água. O caminho percorrido como que sem percalços. A felicidade liquefeita em redemoinhos de paz.

A violinista tem os pés descalços.

sexta-feira, 6 de junho de 2008

As Trouxas.

Cada qual com seu fardo, cada palavra com seu peso.

Mais de duas horas faziam desde que a intrusa se acomodara no canto da sala manifestando uma tranqüilidade atroz, contrária à sua natureza imunda, corroída e naftalínica. Chegou na aspereza da noite sem ser convidada e assentou-se no canto exalando as perplexidades dos olhares dos outros. Ela, emanada da irmã louca, trazida sem conseqüências avaliadas, carregada como o despudor sem escrúpulos. As desculpas para trazer-lhe àquela hora da noite foram insuficientes e incompletas. Havia a água, havia os produtos, e havia as mãos: mas havia um cansaço, egoísta, egocêntrico, que não enxerga além do próprio pêlo escuro, e a insensatez, mas desta não se fala em voz alta, pois ela persegue seus invocadores. Por isso silenciemos, assim como a anfitriã.

Nesse meio tempo, as roupas apodreciam na plasticidade azul.

Fora-se a irmã, ficara a intrusa e seus odores de mulheres. Ficara o flagelo corrompido que mesmo tão ébrio de si mesmo e imploroso ainda possuía um tom sarcástico que a anfitriã não queria reconhecer. Um olhar que ela sentia desde que fora morar com a velha. E desde esse dia ela não era mais ela mesma.

E ela senta-se.

Dois olhos fatigados sentados no sofá e dois botões de ametista a cintilar por detrás do plástico: todos em igualitária correspondência, reciprocidades que não cabem em linhas. Os olhos, assim como as roupas, imploravam sedentos por água. As roupas, assim como os olhos, exalavam o cheiro de um dia no corpo de outrem.

As duas mortas vivendo de olhos abertos, mortas nos corpos dos outros, mortas nos cheiros nos amassos, nos rasgões e na ausência de traços característicos na carne de seda e nos fiapos. Ambas se observando mutuamente. Um momento ela teria de levantar, um momento deveria pegar os olhos de ametista e liberta-los de seu cárcere asfixiante, um momento ela deveria fazer o que a outra não fizera em sua estadia ridiculamente frustrante. Ela, a anfitriã, quando ela o fizesse, estaria livre de um fardo, e preso a outro. Facas de dois gumes. E o fio de sangue já corria.

E agora ali, na escuridão da noite, antes do som das revoluções liquidas, não havia mais uma mulher, nem ali mais uma roupa. Eram ambas trouxas: uma em seu amontoado, outra em sua ingenuidade.

sábado, 31 de maio de 2008

Lembrança

Vejo o tempo em suas tranças infinitas plantando suas raízes na terra úmida das horas que nunca descarrilam e só se acumulam na estação de mim. Vejo o tempo engendrar olhos e ouvidos na superfície orvalhada e reproduzir o som da persistência do nada, continuamente até que se ouçam internos os sons que ora lá fora habitavam. E nesse momento, o tempo produz o silêncio em demasia. E o silêncio atravessa as barreiras do som e penetra nas paredes auditivas como o desconforto da ausência persistindo. E a ausência se faz presente na visibilidade do tempo ocupando seus espaços

Eu tenho o tempo presente nas cobertas e mantas com o cheiro da minha eternidade momentânea. Tenho o tempo na poeira que já fora tua e nas teias que já foram ar. Nas paredes hoje nuas e na corrente de prata da cama. Eu, que tenho o tempo presente na seda dos pulsos. E o tempo, todo ele se ri, hilário e sarcástico, hipócrita de meus olhos. Eu que não sabia que ao tempo se deviam ofertar os mesmo júbilos que se ofertam à deus.

Nesses instantes o tempo pára e me olha. E nesses instantes eu percebo: o tempo sou eu. E como o tempo eu retorno, vivo e radiante, para a estrela vespertina, para a saudade constante, antes que eu, o tempo, me desfaça de mim.E isso, até que o dia seguinte venha. Talvez, pelo menos, até que o dia seguinte venha.E ele sempre vem. Mesmo que frio e com o peso das horas.


quarta-feira, 28 de maio de 2008

Ode às coisas incomensuráveis

Se a saudade é tormento, é o tormento que me afaga e me apaga o desprazer da tua falta que a palavra assim não satisfaz. De mim já se foram a tempos os pretextos e o pressentimento, incorreto ou só concreto, de te ter toda tamanha a força da tua paz.Faz de mim um soberano sem saber sem sobretudos nem cobertas todo mudo e a todas horas num minuto a incerteza do regresso, como fostes capaz de abandonar ao verso esse pobre rapaz que te versa a toda hora e a todo olhar se esvai na sombra de um sonho inquebrantável que se desfez em um pedaço só de solidão. Tão sozinho que permanecido na inexatidão permanceu. Só. Somente só.

sábado, 10 de maio de 2008

Another day close to paradise

Um copo de melancolia suava na manhã gelada e as gotas sussurravam lá fora que seria inútil fechar as janelas: a tempestade era interna.

Talvez por isso ela tenha deixado a porta aberta, os trincos frouxos as janelas exaltadas na penumbra da noite anterior. Não importava quantas tormentas entrassem, mais haviam de sair. E quanto mais saíssem mais a casa seria o vazio auto-suficiente que ela esperava.

Mas nunca ela se esvaziava. Por mais móveis brancos, por mais cortinas limpas, por mais pisos mármore puro como cocaína e cocaína pura como olhos encharcados. Por mais que ela estivesse seca. Ainda persistia a mancha dela mesma naquele lugar sagrado que ela reservara para si e que consigo mesma tornava-se impuro e irrespirável. Ela era sua própria mancha negra. Ela e aqueles pés imundos, e aqueles joelhos escurecidos e aquelas mãos secas. Tão secas. Seca como um deserto que ela fosse obrigada a carregar no paradoxo das chuvas.

Fora isso ainda tinha aquela boca. A maldita. Inútil aquela boca. Minúscula como um grão mostarda, insípida, frustrada, pálida, odiável e, simplesmente... inútil. Toda ela, os dentes a língua as abóbadas celestes que revestem essa horribilidade fatigante de céu. Tudo que ela desejava é que ela explodisse em reviravoltas de luz e se reproduzissem estrondos vermelhos e rios de seiva de seus lábios e ela tivesse seus arrebóis contínuos, espontâneos e irreprimíveis. E como ela queria... Mas não se dá em árvore infrutífera o desabrochar de qualquer tipo de flor olorosa. E dolorosa ela persistiu na inquietude que é o conformismo pela qual não queria passar.

E nas chaves de prata reluzentes na mesa de mogno refletia-se o seu rosto estranhamente deformado. A disformidade das chaves lhe dava a perspectiva certa de seu projeto, de seu protótipo de mulher que queria para si apenas a possibilidade de morar consigo mesma dentro das mesmas paredes internas. Ela era toda o desejo de seu reflexo nas chaves. Chaves finas e agudas como a ponta de um alfinete refletindo o divindade que queria possuir.

Quantos anjos podem dançar na ponta de um alfinete? Perguntava-se enquanto via um reflexo que era o seu mas não era o seu era de outra que ela queria que fosse ela respirasse nela e sentisse nela entrasse e se instalasse em suas entranhas profundamente e a aliviasse. Uma acupuntura de agulhas humanas em veias humanas em pele humana. Ela só queria ser humana. Sendo humana poderia possuir tudo que estava ao seu redor, inclusive seu mármore, suas cortinas, seus desejos, seus vícios, si mesma.

Um toque na campainha.

O reflexo se torna um espiral de cacos que se revoluteiam caoticamente, um tornado cortante e lascivo que lhe escapole à mente deixando um buraco enorme e sangrento.

Suas mãos antes secas suam e os cremes formam um lamaçal de estética fluída que pinga no tapete de pele de urso polar. E seus olhos tornaram enormes e saltaram às órbitas e ela viu eles próprios e viu que tornara seu cômodo sagrado impuro.

Aquela gota imunda desceu ao solo sagrado e ela via a escuridão se apoderando daquele ambiente repentinamente e ela se asfixiou naquela impureza dela mesma. Correu para as escadas tentando o andar superior. Talvez a impureza poupe as escadas e o mármore. Mas a impureza de si mesma não é como qualquer outra. Ela não fica estanque, ela persegue o dono como uma tentativa de restituir-se ao seu corpo. Torna ao impuro o que é impuro. As escadas, os tapetes, a porta do quarto, os pés da cama, o parapeito da janela. Tudo impuro e ela havia se alastrando e amaldiçoando tudo.

Naquele instante, no parapeito da janela, ela viu um clarão . Serpentes flamejantes em forma de fios elétricos revolucionam as ruas lá embaixo. E ela vê, pela primeira vez, a luz. Aquilo que ela ansiava se oferecendo lasciva na sua frente, irredutível, convidativa. Os pés apoiaram-se no parapeito e ela respirou fundo como se fosse sentir aromas ínfimos. O odor da luz pura. O cheiro de sua essência em fios luminosos. Ela em fios luminosos. Sentindo o vento as frases e as incompreensões do mundo. E o mundo em luz só para ela. Tudo é luz até os sons. E os sons são campainhas que desfazem em cacos os vasos de violetas sem alma.

E ela?

quarta-feira, 30 de abril de 2008

A declaração de Olivia O.

Eu quero conter um pouco mais de mim

E dentro de mim encontro um querer incontível

E incontrolável eu desagüei em ti

Todos os quereres que me constavam irreprimíveis


E incontáveis vezes eu encontro o inesperado

E desse embate surgem as mais lindas tristezas

Configuradas no sorriso inalável

Que interpretas com a inconsistência de copos-de-leite


Mas na conscientização do feito este se torna inalienável

E inerte permaneço aos seus olhos de vidro

E imóveis eles fixam os meus, inexatos, invertidos

E incompreendida eu me identifico, vertida em vazios espirais.


As ruínas recém construídas se cobrem do verde solitário

Jazem meus quereres em seu leito de pedra

Piedade.

domingo, 6 de abril de 2008

Alicia

Deitada na relva Alicia não move as pernas fixadas no chão por suas raízes de veias humanas. Alicia não levanta nem se move nem se força às paredes de sua casca. Alicia contenta-se no seu vegetismo perplexo. Dentre as folhagens adiante vejo Alicia enroscando sutil os dedos nas folhas secas e sentindo entre eles o úmido teor do lodo verde, da lama macia. E Alicia olhava para o céu de olhos fechados esperando a gota de orvalho derramar-se em sua sede de menina que não aprendeu a ser. Os olhos verdes cortavam a grama alta e me fixavam como um espelho. E assim como a inconstância líquida do orvalho receava precipitar-se sobre a palidez de sua face eu inconstante e líquido receava aproximar-me da singeleza de sua estrutura. Alicia não se levantou mas se fez levantar pela vagarosidade de um mangue em sua mudança contínua em seu andar quase andar quase estanquidão quase nada e mesmo assim movimento. Alicia encolhia os lábios pra tornar-se mesmo obliterada sendo na sua camuflagem ainda mais viva. Na pele de Alicia a herança da hera e das eras. Do tempo e dos tempos. Da relva e de mim. Embaixo da árvore residia em seus domínios. Embaixo de sua pele residia minha aflição. Seus gravetos erguiam-se às viradas dos anos para apanhar o fruto proibido, mas o ócio embebecia e na agitação do ócio Alicia não pecava. Apenas tendia. E assim nunca conseguiu ser expulsa do paraíso.

E eu... eu apenas observava.

Alicia foi decidida à dormir no período de inverno coberta por uma colcha de gelo. Eu gelei minhas veias, minhas seivas, minha alma de tal modo que respirei por entre os folículos de uma folha. E ansiava deitar-me ao lado de Alicia e abraçar sua lividez hibernal. Queria congelar ao seu lado e despertar ao final do mês de outubro. Mas sabia eu que Alicia fixara-se por demais longe de minhas raízes e por essa razão só me restaram os olhos. Minha dádiva e minha punição. E eu satisfazia-me por poder ver a tez macia e cabia-me na agonia de não poder tocá-la. E eu vi o piscar dos olhos repetidas vezes e não correspondia na escuridão. Todo o tempo passando como um elefante entrando na ampulheta. Alicia cada vez mais vegetal. E eu cada vez mais homem.

quinta-feira, 3 de abril de 2008

Ópio

A penumbra alastrava-se dentro de si mesma sem invadir a lâmina de luz que a atravessava. Diante deste fratricídio imagino que mesmo que a lâmina adentrasse ainda mais as entranhas negras de sua irmã esta se resignaria, calada, pois diante do deplorável estado em que se encontrava, a dor significava seu resquício vital no escuro.

E isso bastava para que a escuridão agonizante revoluteasse e arranhasse as paredes de seu próprio conforto, de sua própria casca vaporosa e gozasse dos seus minutos de vida antes de retornar ao mormaço da noite.

Amparada pelas paredes de cimento descansou e permitiu-se abrir pelo aço de luz. E sentindo na ausência de qualquer coisa a presença de tudo em um êxtase elétrico, a escuridão amou a dor. E amou a luz. E amou a si mesma fazendo da lâmina o seu lago de narciso.

E ele viu que aquilo era bom.

E de seu ventre aberto emergiu sorrateira uma lagarta verde que divina atravessou a lâmina. Uma deusa prototípica de mil pernas que se dissipou etérea ao término de sua peregrinação na luz. E sua fumaça esbranquiçada enroscou-se nos fios invisíveis do aço luminoso, sendo absorvida e apreciada pela irmã homicida.

E a luz converteu-se.

A fumaça da lagarta a fez convulsionar, revolver, reverberar, refletir e esmorecer. E foi esmorecendo. Lentamente. E os olhos fechavam como mortes de duas papoulas. Uma viciada em ópio divino. Ópio de seda. Ópio de lagarta. E enfraquecida a luz volveu-se em escuridão. E sua irmã dilacerada olhou-a com os olhos aflitos, mas cheios de compaixão. E de uma só vez a devorou carregando todo o conteúdo da fratricida em seu ventre. Porque ela reconheceu naquilo o seu destino e a sua essência. A razão intrínseca dela ser ausência. O objetivo pela qual havia sido criada e apagada. A finalidade emergente de sua agonia: Ela devia ser preenchida.

Por que um dia do rasgo mole de seu ventre lhe brotariam Vespas.

E Elas seriam feitas

De luz.

domingo, 23 de março de 2008

Traduction de le vieil amant

Aqui minha primeira tradução do francês.

Emilie Simon, Le vieil amant (o velho amante)


Meu amor eu pensei
Com ingenuidade
Que um só ramo de lírios-do-campo
Poderia te trazer de volta
Agora encontrei
Um ou dois velhos sinos
Para te chamar de volta
Para te chamar de volta
Para mim, meu amor


Num belo dia
De Primaveras que eu deixei
Prados de teus pés caíram
Um só ramo de lírios do campo
Mas ele está seco
Esperando o beijo
Que não mais vem


O mês de Maio
Está no meu rosto
Esse ano
Eu tenho deixado as cores de muita efervescência
Às vezes o mês de Maio
É o meu desinteresse
Esse Ano
Eu tenho deixado as cores de muita efervescência

Às vezes

Às vezes...


Ele está partido, o tempo
Ele não tomou seus tempos
Eu que te espero
Como um velho pretendente
Eu que regresso
De frente à algumas migalhas
Um velho amante
Que não tem nem pé nem cabeça


Meu amor eu pensei
Com ingenuidade
Que um só ramo de lírios-do-campo
Poderia te trazer de volta
Agora encontrei
Um ou dois velhos sinos
Que tu não tinhas jamais amado

O mês de Maio
Está no meu rosto
Esse ano
Eu tenho deixado as cores de muita efervescência
Às vezes o mês de Maio
É o meu desinteresse
Esse Ano
Eu tenho deixado as cores de muita efervescência

Às vezes

Às vezes
...

Eu quero lhe confessar
Dançar face a face
Eu confesso, eu sonho
De te fazer revolutear
Respirar ar fresco
Observar, irradiar
O rosto de um amor
Que não tem visto o dia

Meu amor tenho pensado
Com ingenuidade
Que um só ramo de lírios-do-campo
Poderia te trazer de volta
Agora encontrei
Um ou dois velhos sinos
Eu sei que tu não amas os sinos
Eu sei

O mês de Maio
Está na minha face
Esse ano
Eu tenho deixado as cores de muita efervescência
Às vezes o mês de Maio
É o meu desinteresse
Esse Ano
Eu tenho deixado as cores de muita efervescência
Às vezes

Às vezes...

Pseudo- Independência

Lá fora, um jovem embriagado anunciando sua busca por independência. Temo que as coisas quando anunciadas tornem-se os clichês mais ridículos. Hoje considero a independência algo ridículo.

Na manhã do dia indizível acreditava piamente que a independência se manifestava em mim de modo incomensurável. Para mim independência era ouvir Aretha Franklin enquanto um ônibus inteiro era obrigado a satisfazer-se com os grunhidos da máquina de aço que os engolia e cuspia em seus determinados pontos.

Na minha ignorância de ser humano acreditava que independência era ganhar dinheiro suficiente para comprar um apartamento em um condomínio restrito e decorá-lo com vasos chineses.

E a independência independente de mim era um absurdo que eu negava ver como absurdo. Ela queria que eu descesse do ônibus no próximo ponto e voltasse para casa, assistisse a programação da tv á cabo e mudasse de canal a cada quinze segundos. A independência queria me levar para a casa dela e deita-la comigo em um colchão macio até a madrugada do dia seguinte.

No dia seguinte eu assistiria a aula.

Mas no dia seguinte e nos dias depois do dia seguinte se daria a mesma coisa e a mesma coisa e eu me consideraria o homem mais independente do mundo.

A independência queria que eu tivesse um quarto só para mim e que ligasse e desligasse o ventilador quando eu bem quisesse. E se o ventilador explodisse que eu pudesse aspirar as cinzas.

E a independência queria que eu pudesse escolher entre a minha vida e a vida dos outros sempre optando por uma vida que nem era minha nem era do outro.Era uma vida neutra que deixava que meu conceito de independência decidisse tudo. E a única coisa que eu decidia era a ideologia que eu seguiria. Na verdade nem isso.

Tudo era um conceito pré-formado de ideologias de outros e eu creditava a mim, por acreditar que era eu o fundador delas. Um conjunto de idéias pré-definidas por outros. Que ódio cometer plágio ideológico. Falta de leitura talvez. Talvez excesso. Talvez cegueira intelectual.

E a cegueira já havia corroído todos os sentidos, eu era seguidor de minha ideologia da independência e como um escravo queria obedecê-la anarquicamente através de uma série de regras que ela me impunha. E todos os ditames contrários eram regimes disciplinares absurdos e estúpidos e completamente ridículos. E eu não percebia que criava dentro de mim o regime mais disciplinar de todos. As leis de minha independência. E preso a essa premissa existencial dei sorte por conseguir corroer meu próprio sistema. Muita sorte. Deu-se numa tarde após o dia indizível. Quando tomei as últimas gotas da garrafa e saí à rua numa epifania escandalosa mostrando aos outros o resultado da minha ideologia independencialista.

E todos observaram de suas janelas, espantados e envergonhados, e apontavam, cochichando pausadamente ou comentando no seio da família:

Lá fora, um jovem embriagado anunciando sua busca por independência.

domingo, 2 de março de 2008

Palhaço

Sempre tive paixão por incendiar palhaços.

Na infância um deles tocou minha mão e me olhou com o rosto manchado: ele era todo fogo. E ardeu até as cinzas com a frieza do meu incêndio.

Incêndio frio como a resposta crua e sinceramente cortante de uma criança.

Quando éramos só nós, eu e você, eu ardia no seu fogo, agora tenho de incendiar aos outros para acender em mim uma centelha.

O palhaço é a centelha maior de minha satisfação.

E a satisfação é alcançada pelo cheiro do carvão puro.

Um dia minha amada me apresentou ao circo, e ele me devorou até o solstício de inverno, quando a chama se apagou por apenas um instante e o frio penetrou o negro dos meus olhos. E na escuridão da plenitude que é um olho recém descoberto vi a sombra do olho de um outro alguém. Um alguém que tirava do pó a cobertura de sua face e do sangue antigo a tintura de sua narinas. Naquele momento ele sorriu, debochado, destemido, o peito desabotoado. Sorria faceiro como um menino. Sorria ligeiro como as cegonhas grávidas de crianças imaginárias. Sorriu para ela.

E ela devolveu-lhe com um sorriso canhoto e aberto. Aérea.

Na descida do picadeiro vi os dentes de um palhaço que os meus olhos engoliram numa ânsia ruidosa de amor despedaçado.

Mas o amor serve aos olhos e os olhos ao amor e diante do desterro eu previ o flagelo.

Saiu da cauda do menor do flagelado vivo, e atacou a todos os flagelados do circo. Minha centelha se anunciava brutal.

E o palhaço não viu seu corpo arder. Pois o fogo que o consumia era azul e os olhos dos flagelado não podem ver o azul do fogo. Mas podiam sentir. E enquanto os olhos do palhaço rejubilavam na agonia do fogo minha amada derramou uma lágrima.

E dentro da lágrima dela o meu universo. Límpido, e nu.

Bastaria aquela lágrima para apagar o incêndio do palhaço.

Mas as lágrimas tem sal, e até que me provem o contrário, eu também posso incendiar o sal. Mas quando se carboniza o sal, a chama muda de cor e se torna laranja e vermelha. E os flagelados podem ver a chama vermelha. E viram.

O desespero é uma bola brincando com uma criança num pátio. O desespero é a bola quando a criança explode.

E no fogo trêmulo um elefante levantou as patas e balançou a cabeça suave como se estivesse querendo dizer algo necessário na sua língua de elefante. O elefante porém era mudo até em sua língua. E ao perceber isto tornou-se indiferente para com o incêndio do palhaço. Deu meio volta no próprio corpo e saiu pelos fundos. Na ponta dos pés como uma bailarina obesa de rum.

O século que demorou para que aquilo se consumisse, meu deus... O século que durou para que passasse a tormenta. O século que demorou para recolher os escombros! O século é apenas um século. Um segundo é a eternidade. E a eternidade é cada segundo sem os olhos dela.

Sempre tive paixão por incendiar palhaços.

Hoje incendeio a falta dos seus olhos.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

O Baobá

Naquele século o Baobá irrompeu: único.

Quando estava dentro das paredes do ovo o Baobá não era. Não existia, apenas projetava ser e existir no momento em que se desse a explosão. E a explosão se deu. Surda e inaudível. E nesse instante milenar o Baobá foi como nunca seria antes. E depois voltou a ser menos do que era dentro do ovo.

Quando viu os olhos do mundo se torceu para a esquerda. E o mundo o via como um esquerdo torcido. Quando viu os olhos do mundo sentiu vergonha. Vergonha por ser avesso ao comum, avesso ao esperado, avesso ao seu delírio de árvore desejosa. Invejou a firmeza do imenso carvalho, a dureza do ébano pura, a constância de todas as árvores. E o Baobá chorou por não possuir nele o caráter inato de árvore, aquilo que a partir de seu nascimento tornou-se para ele a qualidade primeva da essência de uma árvore. Ele era o antagônico à sua essência.

Eis que o Baobá era mole.

E assistido pelas demais viu seu pranto tornar-se ódio. Ódio de si próprio, ódio dos outros, ódio de sua moleza. E odiou em sua pureza única de criatura viva.

E o Baobá subverteu sua ordem e gerou dentro de sua casca o ódio venenoso. E desse ódio bebeu divino, esperançoso da morte dos outros. O Baobá queria ser livre de sua estranheza com a morte prematura de seus predecessores. O Baobá tornara-se assassino.

E vendo a assassinidade plena de sua nova criação deus desceu àquela terra seca pela primeira e última vez antes de sua morte e em sua compaixão divina puniu o Baobá. Ele arrancou-o brutal do sólido e em uma cólera suprema arrancou dele suas folhas, seus galhos e seus frutos até dar-se o desespero do Baobá. Depois inverteu-o e de raízes ao vento replantou-o no solo seco de amor..

E as raízes do Baobá tremeram pela primeira vez em sua inexistência. Pela primeira vez o Baobá era livre. E a liberdade do Baobá doe como a vida asfixiada na compacticidade do chão nu: a liberdade imposta a todos os seres. A liberdade irremediável.

Para uma certa mônada que irrompeu única no mundo. Feliz aniversário. =)

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Eu

Às vezes prefiro definir-me como se definiu a G.H. do Romance de Clarice Lispector: quanto a mim, sempre preferi manter uma aspa à esquerda e outra à direita de mim.

Não que eu não exista, não que eu não possua uma identidade. Mas pelo simples fato de minha identidade ser um reflexo deformado de outras identidades que colidiram comigo e em mim, e, talvez, não seja propício chamá-la de minha. Mesmo que no fim nenhum de nós sejamos o que realmente somos, mas um complexo agrupamento de fatores biológicos, psicológicos e grupais espero chegar ao fim pelo menos assumindo que existe uma boa contribuição de mim em mim.

Não que o psicológico não seja um reflexo do meu eu, mas ele de certa maneira não é o que eu quero. Ele é o modo como eu diferencio e escolho as coisas mas nem sempre essas escolhas pessoais são realmente pessoais. Se compro um calçado vermelho por quê gosto da cor vermelha isso pode não ter nada a ver com uma escolha pessoal. E os fatores são tantos que a mente dá nós e os nós doem como um afogamento em mim.

Mas não quero me tornar monótomo. A monotonia leva ao tédio que me leva a algo de mim, mas não eu propriamente dizendo, apenas uma parte segregada de mim que não sou eu, absolutamente. Ou que eu nego ser. Eu inteiro. É estranho falar de um ser inteiro. Os seres inteiros não existem. Os seres são formações. Até as pedras, os ossos e o Infinito são formações. Só o nada é inteiro. Inteiro por não possuir parte e à revelia de suas partes ele é obrigado a ser inteiro. É sua maldição. Seu oposto, o Tudo não é inteiro. Ele é a soma de todas as partes. E eu odeio o mecanicismo.

Odeio-o tanto que o uso. Todos os dias, todas as horas, todos os minutos, todos os ponteiros de máquina. Contar o tempo. Metrificar a vida. Estabelecer metas. Tudo tão regrado que a subversão disso seria a própria subversão em si.

Mas não nos afastemos do tema. Ainda tenho que assumir que eu contribui para minha “identidade estabelecida”. Hoje, nesse exato momento, eu sou. Mas o que me priva de amanhã acordar e ser outro? Ser o inseto monstruoso da Metamorfose de Kafka? Ou a barata epifânica de G.H.? Absolutamente nada. No universo no qual todos nós estamos inseridos acordamos todos os dias e diversos fatores nos fazem modificar nossas idéias primordiais. Quando acordo de manhã desejo ser alguém melhor do que fui ontem.

Mentira!

Mentira... quando acordo de manhã não penso: ajo mecanicamente. Só penso agora que penso algo de manhã por que aparenta ser muito grandioso de minha parte querer ser alguém melhor. Mas eu quero ser alguém melhor. E o que é essa necessidade? De onde vem? Como subiu em meus pêlos? Eu que não queria ser melhor do que o nada o do que as verdades absolutas. Mesmo que de absolutas elas não possuam nada. Ou que a única verdade absoluta é que fora esta, não existam verdades absolutas. Tudo é fruto de um olhar. Mas o que é esse olhar que todos rezam ser meu subjetivismo entrando em ação? Esse sou eu ou essa é a formação? Sou eu que faço as escolhas ou os outros que fazem por mim dentro da minha cabeça? Não quero que os outros entrem na minha cabeça. Não quero, estão me entendendo?

Desculpe, me exaltei. Exaltei-me por que descobri que eu mesmo estou em mim e eu sou o outro. Todos os dias eu sou diferente então eu não posso ser eu mesmo todos os dias nem em todos os lugares. Nem dentro de minha mente. Então... então eu entrei em mim mesmo e acabei espionando; Meu telescópio interno Galileu, olhe por ele, olhe dentro da retina míope e estrábica Galileu olhe e diga o que vê! Diga!

E ele vê os olhos do mundo. Os olhos dos outros conflitantes em mim.

Olhe mais fundo Galileu olhe mais fundo. Os outros se misturam, se confundem se esbarram, se fundem e se marcam reciprocamente até formar-se um só grande ser.

Eu.

Mas um ponto branco, um ponto cego branco, não a cegueira branca de Saramago, apenas um ponto cego que fica ausente está naquele meio difuso. Um buraco, um buraco de minhoca que está equilibrando tudo. O que é a única coisa que não consigo ver? Por que não consigo?

Dentro de mim vejo tudo. Vejo tudo tornar-se eu. Mas tudo não sou eu nem eu sou tudo nem vice-versa nem avessos de avessos de avessos milhares de versos. Eu não vejo. Eu não me vejo. O ponto branco sou Eu. Por que sou o ponto cego, eu não me vejo porque não me posso ver dentro de mim como estou aqui fora. O “Aqui Fora” está sendo feito agora e só depois de armazenado poderá ser visto. Mas quando isso ocorrer o “Aqui Fora” que se torna “Aqui Dentro” já não serei eu.

Mas mesmo não sendo eu... Isso não significa que ele não esteja lá. Eu não vejo mas não é por que não está lá mas por que não está pronto parar ser visto. Nós nunca estamos prontos. E a vida está doendo. Doe de dor e de prazer por saber que eu estou dentro de mim, dentro do meu conflito, mesmo que eu não possa me ver. Mesmo que eu seja cego e nu eu sei. Agora eu sei.

terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Por detrás de um vestido branco

O que incomoda é esse papel em branco na minha frente.

Essas linhas invisíveis que ainda hei de escrever se rejubilando bastardas diante do branco da minha cegueira criativa. Cegueira que implora sedenta um chá de cogumelos azuis...

­"Não, não tem festa... mas tem bolo. Minha Mãe sempre faz um bolo de limão..."

Penso no bolo de limão coberto com uma fina camada de glacê... Meu deus como eu odeio glacê... Aquela tentativa açucarada de destruir a beleza da imperfeição que é um bolo nu. Todas aquelas pessoas passando e ele observando cauteloso tentando prever o assassino que primeiro lhe arrancaria as faces deixando exposta a singeleza carinhosa de seu preparo. E agonizava mudo em cima da mesa enquanto crianças maldosas arrancavam aos poucos o seu vestido de noiva. Ele queria gritar berrar explodir, mas a Mãe em sua sabedoria de doceira costurara seus lábios com açúcar caramelado. Não podia se dar ao desprazer de limpar na manhã seguinte os destroços do suicídio. “Não é mesmo minha querida?”

Ela não estava na sala. O bolo percebeu que gritavam seu nome, e era um nome de faca que já lhe causava rachaduras profundas. A Mãe continuou a chamar enquanto os convidados se reuniam ao redor da mesa e ...

Aconteceu. O bolo foi visto. Foi notado e era agora apreciado como uma obra de arte. Um quadro esculpido em farinha, leite e ovos. E em um desespero incontido o bolo começou a destruir-se interiormente de modo que seus olhos de bolo começavam a inchar e ficaram vermelhos. Mas ninguém viu isso, só ela. Somente ela via aquilo, mas permanecia calada para que não a dessem por louca. Que não a dessem por perdida, por transviada por... “Por deus menina, corta esse bolo!”

E a faca perpassou a carne mole daquele ser tão lentamente que era possível ouvir os ossos de farinha quebrando levemente, como deve quebrar-se um osso dessa qualidade. E ela lembrava que seus ossos também já foram assim esmagados. Um dia.

E sentou-se no sofá com um pedaço do bolo nas mãos olhando o sangue do bolo escorrendo por entre seus dedos e pelos dedos assassinos da faca. Agora não era mais bolo. Não era nada, deixou de ser em questão de segundos.

Tentou ouvir a conversa dos tios, o assunto polêmico, a política, o riso, a pornografia. Sempre escutava essas histórias com o rosto imutável que sustentava um sorriso que lhe traria uma enorme ruga daqui a alguns anos. Levantou-se e foi até o banheiro onde sua Mãe encontrara-a na hora do bolo, mas não sabia por que havia retornado. Olhou para a caixa de cotonetes e se recordou. Não havia limpado os ouvidos.

À Walkíria Souza em comemoração ao seu aniversário.
Celebrando o seu faz-anos com uma xícara de chá azul.

sábado, 26 de janeiro de 2008

Mariposas no Caos

Certo dia a voz me disse: a mariposa é uma borboleta negligenciada. Agora penso que, se assim procede, todas as coisas negligenciadas permanecem à deriva em um caos permanente. E assim o é desde quando a mariposa foi amaldiçoada. Nesse tempo, quando deus criou a mariposa soltou um grito e atirou-a no universo através da janela de deus. No universo, a mariposa permaneceu constante até pousar irrelevante no mundo. E o mundo era repleto de coisas negligenciadas e irrelevantes. Assim ao menos o diziam. Assim ao menos afirmavam os irmãos da mariposa. E todos reivindicavam diante de deus uma posição mais favorável. E essa situação perdurou imutável, até dar-se a morte de deus.

Nesse dia, os dentes da mariposa foram arrancados por pura crueldade dos homens e a mariposa foi obrigada a tornar-se vegetariana. E foi forçada a bater as asas. E foi vinculado a ela um estigma de mau presságio. Mas ainda nesse dia a mariposa jurou vingança e grávida de ódio deu à luz na terra seca à quietude sacramental da perfeição encapsulada. Agora a mariposa era mãe. E agora ela não precisava mais de dentes ou asas ou patas ou rosto. A mariposa só precisava de seda. Acima de tudo de seda. A mariposa é repleta de fios de seda que se entrelaçam harmoniosamente até que das tranças de cumprimento infinitesimal se desfaz quando morre de redemoinhos. E esse é o gozo da mariposa. É nesse momento, no fundo do olho de uma mariposa, que é possível perceber o caos em que ela está determinada, e nesse caos ela supera todos os outros seres. Inclusive a borboleta, e por que não, a própria mariposa.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

Os petrificados

Sobre as torres de pedra gárgulas de pedra observam meticulosamente com seus olhos envolventes a cidade de pedra que sustentam sob suas patas. Nela as pessoas a tropeçar em pedras úmidas e lamacentas e a construir com pedras casas de veraneio. A inconcebível ironia é que dentro dessas pessoas existe um coração de pedra, duro e frio o suficiente para petrificar as torres, as gárgulas, as pessoas, as casas de veraneio e as próprias pedras.

A janela invertida

Os rumores da folhagem agitada pelo vento
Os olhos de papoulas adormecidas
O livre arbítrio no vestido sujo de barro
O sublime relicário abandonado aos fios sedosos
[do tempo

Mariposas felpudas lutam presas ao velcro
Magnólias murcham na jarra de leite
Moinhos de vento à distância de uma brisa
Movimentos convulsos na claridade intensa
[da luz

A fina gota de orvalho no rosto sereno
A estagnação da inquietude movediça
A resignação diante da solitude permanente
A luminescência dourada do campo de trigo.

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

A gôta

E eu bebi do insustentável

E de cada gota lamentei

O peso dos cadarços

Dos meus óculos dos meus traços

Em farrapos os destroços

Daquilo que um dia sustentava ser.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Os espectros

Entrou titubeante e lá estava ela.

Infestava toda a casa. As minúsculas partículas residiam em todos os cômodos como uma lembrança apocalíptica de que a ruína encontrava-se ali, presente, só esperando o momento certo para levar tudo abaixo. Uma entidade que assombra desde os primórdios a quietude sacramental daquela massa de tijolos e cal. No quarto não era diferente. Envolta naquela luminosidade letárgica era ela que dava contorno aos objetos cobrindo-os de uma opacidade maligna. Se incrustava às cortinas brancas, ao vaso de violetas sobre a cômoda e à própria cômoda de modo a tornar tudo menos lustroso retirando aos poucos os resquícios de vida que palpitavam naqueles objetos inanimados e, como se ainda não lhe fosse suficiente, ocupava ela o próprio ar. Uma realidade tão incontestável que era possível senti-la ao inspirar o oxigênio daquele mundo. Uma sensação áspera que descia aos pulmões como agonia e retornava como desespero. E por mais que a governanta a retirasse dos móveis ela regressava, persistente e zombeteira, consciente de que sua função ali deveria ser cumprida a qualquer custo. Custo esse que, todavia, não lhe privava de momentos de paixão. Ali, naquela claridade azulada, exibia-se por entre os feixes de luz que atravessavam as cortinas num balé desgovernado, num movimento contínuo e aleatório que inebriava o ambiente. Ínfimas partículas a dançar como bailarinas ébrias em um espetáculo audacioso através da atmosfera num compasso arrítmico e suave. Magníficas, majestosas e ainda assim ínfimas agonias que em sua singeleza vaporosa ganharam o direito de perpassar por todas as frestas e invadir tudo que lhes aprouvesse. Mas naquele ambiente, àquela hora do dia especificamente poder-se-ia dizer que abandonara o status de proprietária do mundo e resignou-se a dançar livremente como borboletas libertas em um bambual. Era ela no seu momento de devaneio, momento de espairecer. Não era de todo normal que as criaturas humanas espairecessem? Sim, humana, pois um terço de sua composição é pura carne humana. Pele que se desprende desses indivíduos ininterruptamente e que ela acolhe com maior carinho em seu ventre. Humana, pois carrega vida aos montes, montes de artrópodes minúsculos que buscam refúgio em sua neutralidade assim como o corpo humano refugia diversos seres em seu calor. Humana, pois causa dor como os seres humanos, uma dor que afeta corpo e espírito em estado de sofreguidão. Humana, pois tem um propósito nesse mundo e luta para cumpri-lo, mas se nem isso é suficiente para provar sua humanidade, ai daqueles que residem sob este teto, pois a última dádiva que lhes podia ser concedida era abençoar-lhes com a insígnia de seres humanos.

Mas não há tempo para discussões mais aprofundadas. Ele entrou no quarto

Já refletira várias vezes do por que temê-la. Por que temer aquele monte de ossos quebradiços, aqueles músculos moles e açoitados pela caquexia, aquelas mãos delicadas, frágeis. Por que se importar com aquele ser de aspecto vulnerável que não conseguiria nem com todo o esforço do mundo infringir-lhe um golpe? Por que não a põe no seu devido lugar? Talvez, talvez ela não possua um lugar. Talvez seja por isso que se impunha tão fortemente ali. Precisava firmar um lugar, encontrar um habitat propício para infiltrar suas raízes e permanecer segura. Segura do mundo. Ela a eremita, a excluída, a anti-social por excelência. Por quê? Por que tudo isto? Por que ela não podia ser igual ás outras criaturas? Seria a educação européia adquirida nas mais conceituadas escolas estrangeiras? Se assim o fosse ele trilhava um caminho muito semelhante e podia até, quem sabe, aspirar essas mesmas partículas um dia, em uma sala iluminada por essa claridade azul e suavizada por essas mesmas cortinas brancas. Mas não. Ele prometera a si mesmo que não se atiraria a tal abismo, que permaneceria são e salvo em terra firme. Mas de que valem as promessas? De que valem senão mais do que um punhado de pó atirado ao dissabor de uma tormenta? Ele precisava de algo mais. Algo que garantisse sua sobriedade sob qualquer circunstância. Mas como garantir-se são se começassem os seus devaneios? Teria ele capacidade para julgar a si próprio louco? E ela? Será que ela sabe de seu estado mental? Seja como for, parece não haver alternativa e seu raciocínio fica preso nesse labirinto infinito, nessa bolha sufocante, esperando que a tormenta seja, o quão possível, indolor.

E parado naquele quarto em que ele quase nunca adentrava percebeu-se livre de pensamentos. Era como se depois de tanto fluxo mental o cérebro suspirasse, só preocupado em manter por alguns poucos segundos a mente clara e depois disso recomeçar o trabalho. Trabalho que agora consiste em absorver o ambiente.

A cama desforrada iluminada pelo azul assemelhava-se a um mar revolto com suas ondulações disformes. A cabeceira seria uma enorme montanha, um precipício. Lá em cima um ponto negro, talvez algum pequeno inseto, seria um jovem triste que acabara de ler Goethe e se encontrava num total estado de solidão. Nos criados-mudos exibiam-se dois belos abajures brancos com uma iluminação fraquíssima, quase inexistente. Do outro lado do quarto um sofá antigo que mantinha um tom vermelho sangue muito desbotado encostado na parede oposta à entrada. Em frente ao sofá, quase encostado, o divã. Aquele divã vermelhíssimo que ela trouxera de uma das viagens à Europa com uma pintura dourada sobre a madeira repleta de afrescos que desbotava ainda mais a cor do outro, o velho sofá. Nas paredes quadros do período neoclássico retratando vastos campos e retratos renascentistas maravilhosos de senhoritas que hoje só aspiram a beleza da morte e da inexistência.

Mas o retrato perfeito se apresentava bem a sua frente. Ela, vestida com um trapo branco semi-transparente que lhe assentava como seda deixando nuas as costas magras. Estava extremamente pálida, e por mais que as violetas estivassem cheias de poeira ainda destacavam-se mais do que aquele corpo branco e diáfano. Não podia negar que ela era bela, mas a doença e a loucura a deterioraram deixando apenas os olhos verdes e os cabelos ruivos, vivos e transtornados, como lembrança da perfeição da qual ela era dotada. A poeira parou completamente seu movimento como se congelasse instantaneamente. Á frente dela estava um enorme espelho emoldurado em bronze e ela fitava-o, séria, através dele.

Sem saber como agir e sentindo-se encurralado por aqueles olhos cortantes ele empalideceu. Ficara tão branco quanto ela. Dera um passo para trás, mecanicamente, como se os olhos daquela mulher fossem esmeraldas lapidadas em forma de lanças. Eram dois fantasmas a se fitar. A se observar mutuamente sem dizer uma palavra, mas sabendo no fundo, qual seria a próxima atitude do outro.

Como se ele estivesse petrificado ela decidiu agir e levantou-se suavemente da cadeira onde jazia, próxima á cômoda. Sem desviar os olhos do intruso deslizou a ponta dos dedos por sobre a cômoda e entreabriu os lábios descolorados. Apertou os olhos numa sensação de confusão e gozo. Agora mais do que nunca ela conseguira congela-lo. Virou a cabeça vagarosamente em sua direção. Isso tudo ela fazia com uma sensualidade descomunal. Quem a visse pela primeira vez nunca poderia supor o quão cruel era esse jogo que ela realizava e como era humilhante seu desfecho, e ela o realizava sempre que podia. Se não para outrem, para ela própria, testando-se. Já a essa altura caminhava ela na direção do intruso. Caminhar entretanto não é uma expressão utilizável para a majestosa maneira com a qual ela se locomovia. Ela flutuava elegantemente e como que se quisessem acompanhá-la, as partículas de poeira movimentaram-se no seu ritmo, suave e, sobretudo, sensual. Ou seria ela que seguia a poeira que reiniciava o seu balé? Seja como for, ela possuía esse dom de tornar sensuais as pequenas coisas. Esse poder de tornar tudo a seu favor com apenas um toque, um olhar, ou um suspiro. Mas tudo isso era premeditado. Já se era sabido e a tensão no ar tornou-se insuportável e ele arfava até que a explosão tornou-se irreprimível.

- Iohanna serviu o desjejum!

O eco reverberava pelo aposento como uma sentença de morte irremediável.

Ele não pôde conter-se. Se continuasse calado seria atingido pelo demônio da loucura que tanto desprezava naquela mulher. Por isso arrancou do íntimo, do inatingível, forças para cumprir o que lhe haviam ordenado. O grito fora desmedido e atingira um tom de desespero incontido. Saíra como a lufada de ar de um blasfemo. Tão estridente que ultrapassara às paredes do quarto e estendera-se por toda a casa chegando aos ouvidos de todos, quebrando o silêncio como um copo de vidro a estraçalhar-se no chão. Ela conseguira novamente. Humilhara-o sem dizer uma palavra. Satisfeita, esfregou a ponta dos dedos no rosto do intruso deixando um pó cinza acumulado em sua face. Voltou à cômoda e sentou-se indiferente a tudo e a todos. Com os olhos repletos de lágrimas ele saiu do quarto e correu em direção à cozinha. Ela não faria o desjejum mais uma vez. A porta fechou-se sozinha.

Isadora

contorcida naquele dourado contrastante com o estofado verde-musgo, me olhava a cadeira com ar desengonçado. ela que já possuira em seus braços sinuosos o corpo de isadora. seu tecido sedoso, seu aspecto clássico, seus contornos descontornos repletos de revoluções que retratam a superficialidade de luís xv. luís xv e suas rosadas bochechas afeminadas.

mas não, não deixemos isadora, que as bochechas de luís xv hoje se desfazem na frialdade inorgânica do barro de um pântano qualquer, mas a frialdade de isadora permanece esculpida no rosto de vidro que lhe foi dado por seu criador de barro.

agradeçamos meus caros, agradeçamos pela graça que é termos a nossos olhos a prova concreta da existência divina em olhos, seios, lábios, hormônios e suores e gemidos e beleza.

e suspiros e delicadeza. e elucumbram as mais distantes idéias em minha cabeça ébria por realizar que isadora hoje não está sentada na cadeira. e isadora hoje não se veste de cetim e brinca com uma taça de vinho nem me apunhá-la com aquele olhar de lança que excita e que alcança o mais profundo do profundo. um âmago amargo provo eu agora ao perceber que minha isadora demorava os dedos diáfanos por sobre o copo a espiar as horas corridas no relógio do salão.

Ensaio sobre o desespero

O desespero se levantou da cama naquela manhã e roeu a cal das paredes.

O desespero comeu o cimento das reentrâncias, o fosfato dos tijolos e a tinta fresca. Lambeu os lábios secos e os filetes de sangue quente. O desespero rangeu os dentes e roeu as unhas dos dedos dos pés, arrancou as cutículas e as cascas das feridas até que não sobrasse coisa alguma.

O desespero como um glutão comeu meu café da manhã, meu almoço e meu jantar para depois vomitar palavras de arrependimento. O desespero comeu o arrependimento e esfregou os dedos no tampo do sanitário.

O desespero aspirou meus pós e bebeu meu vinho. E derrubou a taça que encarnou a toalha de mesa. Que rasgou-se em trapos que virou-se a mesa que atirou-se pela janela encarnando a calçada com um tom suave de criança.

O desespero tomou meus analgésicos, meus anestésicos, meus narcóticos e meus tranqüilizantes. O desespero tomou todos os meus tranqüilizantes. E tomou-me pela mão docemente até arrancar meus braços. E caminhamos lentamente até alejar-me as pernas.

Mas o desespero anorexo quebrava os próprios ossos se jogando contra a parede ininterruptamente em um êxtase de agonia profunda. E ele o fez até devorar a parede inteira.

O desespero calçou as sapatilhas e dançou o lago dos cisnes até cair de exaustão nos cacos de vidro. O desespero mastigava os cacos de vidro.

E saiu às ruas gritando para ficar mudo, chorando para ficar cego e apenas ouvindo a indiferença para ficar surdo. O desespero furou a garganta, os olhos e os tímpanos, mas ainda assim podia sentir a indiferença.

Subiu as escadas agonizando no acrílico. Apoiou-se nos corrimões cuspidos. Caiu de cara na própria acidez do solo. Não havia tapetes.

O desespero não acharia aconchego nos tapetes, nem nos gritos, nem no vômito nem na cal das paredes. O desespero comeu minha paciência, minha tranqüilidade, meus filhos e minha decência. O desespero comeu minha existência.

No fim de todos os dias quero acreditar que o desespero sou tudo, menos eu.