domingo, 30 de novembro de 2008

As tempestades

Quando o pequeno Samuel saiu pelas alamedas contando obsessivo as camélias desabrochadas, dir-se-ia que anunciava os desarranjos do fim do mundo. Suas pernas tentavam executar propriamente o passo que, se ao certo não saía, em nada se devia a falta de vontade, mas sim, aos maus hábitos da esquerda: pois que tendia a mancar a ingrata.
Esse jeito desengonçado de andar se ampliava na aceleração do passo, tornando cada movimento um constante e angustiante vir-a-ser no chão de paralelepípedos. E essa constância assombrava os vizinhos, que o viam saltar entre as valas sem se importar com a precipitação de seu corpo sobre o infinito escuro.
Eis que ele não temia a precipitação das coisas.
E nessa pressa irrefletida, Samuel prosseguia cambaleante em um desabamento de si mesmo. Seu deslocamento desarticulado o impedia de olhar por sobre os telhados, onde o céu se anunciava em um enorme revertério. As nuvens opacas se aconchegavam na premissa de uma tormenta que antes de se fazer completa exibia-se em suas potencialidades. A tempestade e sua arrebentação. Esse estado de eterna revolução das coisas atmosféricas.
Samuel, todavia, em nada aparentava realizar a tempestade. Todas aquelas perturbações celestes ele absorvia como conseqüência de sua própria instabilidade. Na imersão de seu mundo fantasioso, o trovão ruidoso era o grito angustiado de uma alma cativa, as árvores chacoalhavam em despedida, mas o vento... o vento era uma criatura absurda.
Ele não confiava naquela manifestação invisível da natureza. Para ele a concreticidade do vento era tão abstrata que só se satisfazia de compreensão por ele mesmo. O vento só podia ser compreendido pela sua própria natureza fluida, livre e com ânsias de se atirar dos precipícios. Somente um ser de igual conformidade poderia compreendê-lo. E este ser ainda não existia.
Apesar da constatação da unicidade e singularidade do vento, Samuel não parecia estremecer por tal juízo. Na realidade, seu maior medo não se vinculava à essência do vento, mas sim, à suas palavras obscuras ditas naqueles sons sussurrantes. Pois que o vento detinha em sua estrutura as vozes cacófonas do mundo. E o mundo, era uma instância da crueldade humana só que servida em um prato mais gélido.
Ao perceber as confissões que lhe adviriam, pois o vento não podia se calar perante tudo que absorvia e alguma hora iria tudo proclamar aos ouvidos de um transeunte, Samuel percebeu-se sozinho. No meio de uma grande praça de frente ao mirante e seu horizonte acimentado, viu portas, janelas e cadeados, todos em pleno encarceramento.
O mundo havia parado para ver a tempestade passar.
No meio da praça, isolado, viu ao longe no marrom dos telhados movimentações incomuns de telhas e grades: tudo sendo arrastado. E ele, um espectador passivo não podia parar de pensar se aquele povo também não lhe culparia por isso.
Ele o farrapado, a criança órfã e destrutiva. Ele o contador de camélias desabrochadas, que vivia da boa vontade das mulheres viúvas. Elas que o adotavam por alguns dias e depois o largavam como um cachorro sarnento. Há de se enjoar com aquele passo. Ele e sua culpabilidade por tudo. Como se o mundo todo lhe dissesse que por nascer daquele jeito podia ser submetido às conseqüências dos outros. Mas a culpa, ele sabia, não era dele. Era a tempestade que queria o culpar. Mas ninguém iria acreditar na fala de uma criança louca cujos pensamentos são tão disformes quanto seu corpo e suas pernas. Ninguém acreditaria que a tempestade está-lo-ia usando como a um boneco desengonçado. Um títere nas mãos do titereiro divino.
Não se sabe ao certo se seria Samuel já incitado pelo vento ou suas revoluções internas que o tomavam, mas ele havia decidido. Não mais permitiria sua culpabilidade efervesceste. Não mais o impediriam de saltar por sobre as valas, não mais deixaria a casa de uma senhora idosa em razão do brinquedo ter vindo quebrado. A natureza não mais aceitaria essa devolução. E tomado de um estranho sentimento de desabamento, sentiu-se oscilante como uma casa de estrutura frágil, e na frente do horizonte ouvia o vento e o compreendia. Eles teriam a mesma natureza, e finalmente, Samuel poderia sentir o sabor daquele absurdo. Ele seria irreprimível.
Quando o pequeno Samuel saiu pelas alamedas contando obsessivo as camélias desabrochadas, dir-se-ia que anunciava os desarranjos do fim do mundo.

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Uma reflexão sobre o mundo

− E então?
− Bem... Se o mundo pudesse ser simplificado nos termos coisificados da palavra simbólica eu diria que o mundo é um aglomerado de coisa alguma que se finge ser algo para ter reconhecimento dos órgãos superiores. Os órgãos superiores por sua vez seriam outros aglomerados de coisas que não sustentam coisa alguma mas que fingem tão bem que chegaram a ser considerados reais (e por isso superiores), mesmo no seu fingimento. O real da coisa por outro lado é algo muito individual, porque no fim mesmo não existe real coletivo para contrastar com esse real que é real mesmo. Existem as coisas abstratas e as coisas materiais e o homem é uma coisa real enquanto abstrato e enquanto real e enquanto existente. Acima de tudo existente. Porque veja bem: se o homem não existe não existe real. Existem coisas cuja existência não podem ser confirmadas porque não existem seres humanos que as confirmem. Se uma árvore cai no meio da floresta, como ter certeza de que ela caiu se ninguém ouviu o estrondo dos exoesqueletos das formigas rompendo-se no chão de folhas mofadas? Isso necessitaria de um ser humano que existisse, e que, além de existir, estivesse presente de alguma forma. Nem que fosse só por um instante. Nem que fosse por um instante inteiro. Nem que fosse um entomólogo.
Então, se o mundo acaba-se, ainda existiria real? Ou melhor, se o ser humano acabasse ainda existiria real? Acredito que não. Se existisse, ninguém poderia saber e confirmar. E o fim do mundo seria esse fim dos outros que não somos nós mas são humanos. E de nós também se nos colocarmos como raça de indigentes que falam e fazem coisas inventadas por nós em cima de uma realidade também inventada por nós para alcançarmos metas e objetivos inventados por nós. Por isso, para mim, o mundo é uma grande invenção e nós somos todos inventores de coisas novas com significados diversos para encobrir a desnecessidade de estarmos permanentemente inventando essas mesmas coisas. Por isso eu parei de inventar. Virei revolucionário. Virei anarquista! Virei...
− Inventor.