quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

O Baobá

Naquele século o Baobá irrompeu: único.

Quando estava dentro das paredes do ovo o Baobá não era. Não existia, apenas projetava ser e existir no momento em que se desse a explosão. E a explosão se deu. Surda e inaudível. E nesse instante milenar o Baobá foi como nunca seria antes. E depois voltou a ser menos do que era dentro do ovo.

Quando viu os olhos do mundo se torceu para a esquerda. E o mundo o via como um esquerdo torcido. Quando viu os olhos do mundo sentiu vergonha. Vergonha por ser avesso ao comum, avesso ao esperado, avesso ao seu delírio de árvore desejosa. Invejou a firmeza do imenso carvalho, a dureza do ébano pura, a constância de todas as árvores. E o Baobá chorou por não possuir nele o caráter inato de árvore, aquilo que a partir de seu nascimento tornou-se para ele a qualidade primeva da essência de uma árvore. Ele era o antagônico à sua essência.

Eis que o Baobá era mole.

E assistido pelas demais viu seu pranto tornar-se ódio. Ódio de si próprio, ódio dos outros, ódio de sua moleza. E odiou em sua pureza única de criatura viva.

E o Baobá subverteu sua ordem e gerou dentro de sua casca o ódio venenoso. E desse ódio bebeu divino, esperançoso da morte dos outros. O Baobá queria ser livre de sua estranheza com a morte prematura de seus predecessores. O Baobá tornara-se assassino.

E vendo a assassinidade plena de sua nova criação deus desceu àquela terra seca pela primeira e última vez antes de sua morte e em sua compaixão divina puniu o Baobá. Ele arrancou-o brutal do sólido e em uma cólera suprema arrancou dele suas folhas, seus galhos e seus frutos até dar-se o desespero do Baobá. Depois inverteu-o e de raízes ao vento replantou-o no solo seco de amor..

E as raízes do Baobá tremeram pela primeira vez em sua inexistência. Pela primeira vez o Baobá era livre. E a liberdade do Baobá doe como a vida asfixiada na compacticidade do chão nu: a liberdade imposta a todos os seres. A liberdade irremediável.

Para uma certa mônada que irrompeu única no mundo. Feliz aniversário. =)

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Eu

Às vezes prefiro definir-me como se definiu a G.H. do Romance de Clarice Lispector: quanto a mim, sempre preferi manter uma aspa à esquerda e outra à direita de mim.

Não que eu não exista, não que eu não possua uma identidade. Mas pelo simples fato de minha identidade ser um reflexo deformado de outras identidades que colidiram comigo e em mim, e, talvez, não seja propício chamá-la de minha. Mesmo que no fim nenhum de nós sejamos o que realmente somos, mas um complexo agrupamento de fatores biológicos, psicológicos e grupais espero chegar ao fim pelo menos assumindo que existe uma boa contribuição de mim em mim.

Não que o psicológico não seja um reflexo do meu eu, mas ele de certa maneira não é o que eu quero. Ele é o modo como eu diferencio e escolho as coisas mas nem sempre essas escolhas pessoais são realmente pessoais. Se compro um calçado vermelho por quê gosto da cor vermelha isso pode não ter nada a ver com uma escolha pessoal. E os fatores são tantos que a mente dá nós e os nós doem como um afogamento em mim.

Mas não quero me tornar monótomo. A monotonia leva ao tédio que me leva a algo de mim, mas não eu propriamente dizendo, apenas uma parte segregada de mim que não sou eu, absolutamente. Ou que eu nego ser. Eu inteiro. É estranho falar de um ser inteiro. Os seres inteiros não existem. Os seres são formações. Até as pedras, os ossos e o Infinito são formações. Só o nada é inteiro. Inteiro por não possuir parte e à revelia de suas partes ele é obrigado a ser inteiro. É sua maldição. Seu oposto, o Tudo não é inteiro. Ele é a soma de todas as partes. E eu odeio o mecanicismo.

Odeio-o tanto que o uso. Todos os dias, todas as horas, todos os minutos, todos os ponteiros de máquina. Contar o tempo. Metrificar a vida. Estabelecer metas. Tudo tão regrado que a subversão disso seria a própria subversão em si.

Mas não nos afastemos do tema. Ainda tenho que assumir que eu contribui para minha “identidade estabelecida”. Hoje, nesse exato momento, eu sou. Mas o que me priva de amanhã acordar e ser outro? Ser o inseto monstruoso da Metamorfose de Kafka? Ou a barata epifânica de G.H.? Absolutamente nada. No universo no qual todos nós estamos inseridos acordamos todos os dias e diversos fatores nos fazem modificar nossas idéias primordiais. Quando acordo de manhã desejo ser alguém melhor do que fui ontem.

Mentira!

Mentira... quando acordo de manhã não penso: ajo mecanicamente. Só penso agora que penso algo de manhã por que aparenta ser muito grandioso de minha parte querer ser alguém melhor. Mas eu quero ser alguém melhor. E o que é essa necessidade? De onde vem? Como subiu em meus pêlos? Eu que não queria ser melhor do que o nada o do que as verdades absolutas. Mesmo que de absolutas elas não possuam nada. Ou que a única verdade absoluta é que fora esta, não existam verdades absolutas. Tudo é fruto de um olhar. Mas o que é esse olhar que todos rezam ser meu subjetivismo entrando em ação? Esse sou eu ou essa é a formação? Sou eu que faço as escolhas ou os outros que fazem por mim dentro da minha cabeça? Não quero que os outros entrem na minha cabeça. Não quero, estão me entendendo?

Desculpe, me exaltei. Exaltei-me por que descobri que eu mesmo estou em mim e eu sou o outro. Todos os dias eu sou diferente então eu não posso ser eu mesmo todos os dias nem em todos os lugares. Nem dentro de minha mente. Então... então eu entrei em mim mesmo e acabei espionando; Meu telescópio interno Galileu, olhe por ele, olhe dentro da retina míope e estrábica Galileu olhe e diga o que vê! Diga!

E ele vê os olhos do mundo. Os olhos dos outros conflitantes em mim.

Olhe mais fundo Galileu olhe mais fundo. Os outros se misturam, se confundem se esbarram, se fundem e se marcam reciprocamente até formar-se um só grande ser.

Eu.

Mas um ponto branco, um ponto cego branco, não a cegueira branca de Saramago, apenas um ponto cego que fica ausente está naquele meio difuso. Um buraco, um buraco de minhoca que está equilibrando tudo. O que é a única coisa que não consigo ver? Por que não consigo?

Dentro de mim vejo tudo. Vejo tudo tornar-se eu. Mas tudo não sou eu nem eu sou tudo nem vice-versa nem avessos de avessos de avessos milhares de versos. Eu não vejo. Eu não me vejo. O ponto branco sou Eu. Por que sou o ponto cego, eu não me vejo porque não me posso ver dentro de mim como estou aqui fora. O “Aqui Fora” está sendo feito agora e só depois de armazenado poderá ser visto. Mas quando isso ocorrer o “Aqui Fora” que se torna “Aqui Dentro” já não serei eu.

Mas mesmo não sendo eu... Isso não significa que ele não esteja lá. Eu não vejo mas não é por que não está lá mas por que não está pronto parar ser visto. Nós nunca estamos prontos. E a vida está doendo. Doe de dor e de prazer por saber que eu estou dentro de mim, dentro do meu conflito, mesmo que eu não possa me ver. Mesmo que eu seja cego e nu eu sei. Agora eu sei.