"Os olhos ainda eram cerrados quando se deu conta de que, naquela hora, elas estariam fazendo coisas no teto do quarto".
(...)
Quando abriu os olhos soube-as solitárias, descrevendo círculos imaginários na imensidão branca. E sentiu compaixão por aqueles seres desnorteados que em si mesmas esbarravam, provocando nos olhos invadidos pelo novo dia, a sensação de que o mundo todo acordava.
E eis que o mundo estava ébrio.
Na embriaguez do mundo, a manhã era uma cortina branca de seda encobrindo a janela. Nessa cortina se contavam os dias em um horário próprio que diferia enormemente do horário do mundo lá fora. Porque o mundo lá fora agora não existia e a hora, a hora tornava-se, então, um conceito obsoleto.
E na ausência da hora e do mundo observava, enquanto as circunvoluções se faziam mais constantes no silêncio compacto do ambiente. E podia ouvir a distância das asas e do teto no sibilar único da batida do coração de um lepidóptero. As batidas ritmadas do coração de um lepidóptero.
Quando criança, a mãe dizia-as crepusculares petulantes e em compulsões assassinas de matriarca neurótica, espalhava inseticida pelos quatro mil cantos da casa. Na manhã do dia seguinte acordavam tapetes de asas de seda e pisava sentindo nos pés nus a crueldade humana adentrando pelos poros. E a criança sentiu pela primeira vez o outro lado da humanidade. A humanidade plena.
Naquele momento, com os olhos e a cama, lembrou-se das asas espalhadas no chão e o encontro dos pés com as cascas secas das vítimas de sua mãe e lhe ocorreu por um instante um desejo súbito, indesejável, mas irreprimível. Sua boca abriu-se lentamente como que para pedir socorro do sentimento de humanidade que lhe tomava e sentiu formigas queimando na ponta da língua. Seus olhos se ampliaram de modo que as órbitas entraram em colapso e soube-as prestes a extrapolar os ossos. Seus pulmões encheram-se de líquidos atmosféricos e num processo de explosão reprimida tremeu as pontas dos dedos, distônicos:
E tudo parou.
Tudo parou como que predizendo algo extraordinário. Tudo parou como o silêncio que precede o extraordinário. O momento antes da tempestade e o momento antes desse momento. Tudo era antes para que se adiasse ao mais ínfimo instante o processo desencadeado pela radioatividade humana e seu forno-radioativo-emocional. E isso, sabia, provocaria grandes perturbações no céu branco.
Mas todos os momentos são repletos de falhas, e uma delas, é que ele termina.
Prevendo o desaparecimento da constância inerte em que se encontrava tomou a decisão de tomar uma atitude e decididiu-se a se decidir pulando repentinamente em direção ao teto. Sentiu o vento inerte movimentando seu corpo. Seus músculos adormecidos, sua boca aberta se enchendo de ar, e uma queda desproposital enquanto as cascas de seda ainda vivas se refugiavam nos outros cantos do céu provisório.
E na queda, não sentiu nada. Só a dor de saber que do chão, não passaria.
Com sentimentos de humilhação e incompreensão perfurantes, se levantou do chão bruto. Ficou estanque no quarto. Não ouviu gritos. Todos dormiam. Ninguém jamais saberia de nada. Mas sabia. Sabia o que ia fazer. Sabia do seu plano sórdido. Sabia de que agora em diante não poderiam coexistir na mesma casa. Alguém tinha de ir. Tentaria de novo, mas não pôde. Não podia. Era frágil como uma casca, que caída no chão, se esfacelara. Não mais atentaria contra as donas das cortinas de seda branca e em conformismo correu em descompasso desaparecendo nos corrimões da escada.
Porque no fundo, sempre soube: tinha ânsia por comer mariposas.
3 comentários:
hmm, interessante!
qualquer coisa da barata de lispector misturada com o inseto de kafka numa coisa meio psicodélica =)
muito bom. psicodelia e sentimento de estar vendo de fora, de nao participar. gostei =)
mas as vezes acho q vc podia tentar escrever algo menos subjetivo. nao q seja ruim, gostei muito. mas tenta, em outro texto, pra ver o resultado =)
=*
eu ia comentar q tinha lembrado de clarice, mas a tati falou primeiro ;Pp
e você não sabe do meu medo de borboletas e coisas do gênero, então não sabe que eu me retorci dolorosamente com a última frase.
Mas o texto está ótimo, como sempre!
=***
Brogda, novo texto; só faço aqui diatribes, O-K.?; legal o título, o início do texto me lembrou o ‘Vastas emoções e pensamentos imperfeitos’, do Rubem Fonseca, o despertar num delírio; me pareceu, o início; o personagem tenta se guiar e se segurar pela luz que entra na fresta da janela, na luz do amanhecer, branca; ficou... sei lá, tô andando sem poder de comentes, foi mal brogda, mas ficou legal o texto; culpa do leitor mesmo... rsrs; agora esse final ficou foda!!; escrevamos, porque nos comentes...
A.J.
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