sábado, 30 de agosto de 2008

Havia algo mais do que pedras no meio do caminho

Em contato com o asfalto quente a pele da cachorra soltou um grito de rasgo e o carro em um solavanco arriou no gemido da descompassada ambulante.. Na primeira roda formou-se um revertério de patas entrelaçadas-dismorfizadas-uma-por-cima-da-outra como uma contorcionista acidentada que no meio do palco se desmonta e as mãos rolam para a platéia. No meio termo entre a primeira e a segunda roda a massa de patas assa no maquinário do carro e a cachorra sente o cheiro da carne frita no aço e sente fome. Uma fome canibalesca de comer-se a si própria no tempo convulso para , pelo menos, não morrer de barriga vazia.

Mas a fome dá espaço a um sentimento mais profundo e sem nome que as pessoas teimam em chamar compaixão por faltar de nome e explicação, e aí nesse momento já não sei se sou eu ou a cachorra ou a sintonia de nossas cabeças mas surgiu, sem se ver ou notar, o medo nos olhos da motorista. E o medo era sentindo nos ossos expostos dos braços da bicha e nos meus olhos expostos aos cacos da cena. E era um medo maravilhoso, cheio de luz. E ela devia ter os olhos arregalados como o da vítima, e os braços paralisados, sim, assim também como da vítima, como a assassina, como de todos presentes, como eu e minha pressa em atravessara rua.

Mas não pude ver no decorrer da cena o último golpe da homicida, a segunda roda e a explosão definitiva. Meus olhos se fecharam e eu só pude pensar que naquela segunda feira eu vi a morte olhar nos meus olhos pelos olhos de uma cachorra.

O freio rangeu e a cachorra ainda gemia quando abri os meus olhos rangidos. E ela me olhou e quis dizer algo. Sua última palavra em seu último suspiro. Fez todo um esforço com as patas trêmulas para abrir a boca. E não diferir nada.

A homicida arregalou os olhos e olhou para trás logo depois de sentir na sinfonia do freio a ladroagem da ferida da rodovia. Mas ao sair do carro mais ferida ali não havia. Havia um coração espatifado na avenida. E seu coração se espatifou pela expressão que se via em seus olhos pelos meus olhos e pelo da cachorra. E esse espatifamento que pode ser tanto humano como um atropelamento manteve-a fora de si por um breve momento e em um desepero de braços agitando ela correu em direção à poça vermelha e se agachou no basalto negro balançando a cabeça.

Nesse dia, escrevi no diário que tomei uma soda, vesti uma bermuda e vi uma cachorra morta ser beijada pela assassina.

Um comentário:

Laís disse...

txaaaaaaaahhh!
q fodásticoooo!

"Meus olhos se fecharam e eu só pude pensar que naquela segunda feira eu vi a morte olhar nos meus olhos pelos olhos de uma cachorra."

=O