segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Os espectros

Entrou titubeante e lá estava ela.

Infestava toda a casa. As minúsculas partículas residiam em todos os cômodos como uma lembrança apocalíptica de que a ruína encontrava-se ali, presente, só esperando o momento certo para levar tudo abaixo. Uma entidade que assombra desde os primórdios a quietude sacramental daquela massa de tijolos e cal. No quarto não era diferente. Envolta naquela luminosidade letárgica era ela que dava contorno aos objetos cobrindo-os de uma opacidade maligna. Se incrustava às cortinas brancas, ao vaso de violetas sobre a cômoda e à própria cômoda de modo a tornar tudo menos lustroso retirando aos poucos os resquícios de vida que palpitavam naqueles objetos inanimados e, como se ainda não lhe fosse suficiente, ocupava ela o próprio ar. Uma realidade tão incontestável que era possível senti-la ao inspirar o oxigênio daquele mundo. Uma sensação áspera que descia aos pulmões como agonia e retornava como desespero. E por mais que a governanta a retirasse dos móveis ela regressava, persistente e zombeteira, consciente de que sua função ali deveria ser cumprida a qualquer custo. Custo esse que, todavia, não lhe privava de momentos de paixão. Ali, naquela claridade azulada, exibia-se por entre os feixes de luz que atravessavam as cortinas num balé desgovernado, num movimento contínuo e aleatório que inebriava o ambiente. Ínfimas partículas a dançar como bailarinas ébrias em um espetáculo audacioso através da atmosfera num compasso arrítmico e suave. Magníficas, majestosas e ainda assim ínfimas agonias que em sua singeleza vaporosa ganharam o direito de perpassar por todas as frestas e invadir tudo que lhes aprouvesse. Mas naquele ambiente, àquela hora do dia especificamente poder-se-ia dizer que abandonara o status de proprietária do mundo e resignou-se a dançar livremente como borboletas libertas em um bambual. Era ela no seu momento de devaneio, momento de espairecer. Não era de todo normal que as criaturas humanas espairecessem? Sim, humana, pois um terço de sua composição é pura carne humana. Pele que se desprende desses indivíduos ininterruptamente e que ela acolhe com maior carinho em seu ventre. Humana, pois carrega vida aos montes, montes de artrópodes minúsculos que buscam refúgio em sua neutralidade assim como o corpo humano refugia diversos seres em seu calor. Humana, pois causa dor como os seres humanos, uma dor que afeta corpo e espírito em estado de sofreguidão. Humana, pois tem um propósito nesse mundo e luta para cumpri-lo, mas se nem isso é suficiente para provar sua humanidade, ai daqueles que residem sob este teto, pois a última dádiva que lhes podia ser concedida era abençoar-lhes com a insígnia de seres humanos.

Mas não há tempo para discussões mais aprofundadas. Ele entrou no quarto

Já refletira várias vezes do por que temê-la. Por que temer aquele monte de ossos quebradiços, aqueles músculos moles e açoitados pela caquexia, aquelas mãos delicadas, frágeis. Por que se importar com aquele ser de aspecto vulnerável que não conseguiria nem com todo o esforço do mundo infringir-lhe um golpe? Por que não a põe no seu devido lugar? Talvez, talvez ela não possua um lugar. Talvez seja por isso que se impunha tão fortemente ali. Precisava firmar um lugar, encontrar um habitat propício para infiltrar suas raízes e permanecer segura. Segura do mundo. Ela a eremita, a excluída, a anti-social por excelência. Por quê? Por que tudo isto? Por que ela não podia ser igual ás outras criaturas? Seria a educação européia adquirida nas mais conceituadas escolas estrangeiras? Se assim o fosse ele trilhava um caminho muito semelhante e podia até, quem sabe, aspirar essas mesmas partículas um dia, em uma sala iluminada por essa claridade azul e suavizada por essas mesmas cortinas brancas. Mas não. Ele prometera a si mesmo que não se atiraria a tal abismo, que permaneceria são e salvo em terra firme. Mas de que valem as promessas? De que valem senão mais do que um punhado de pó atirado ao dissabor de uma tormenta? Ele precisava de algo mais. Algo que garantisse sua sobriedade sob qualquer circunstância. Mas como garantir-se são se começassem os seus devaneios? Teria ele capacidade para julgar a si próprio louco? E ela? Será que ela sabe de seu estado mental? Seja como for, parece não haver alternativa e seu raciocínio fica preso nesse labirinto infinito, nessa bolha sufocante, esperando que a tormenta seja, o quão possível, indolor.

E parado naquele quarto em que ele quase nunca adentrava percebeu-se livre de pensamentos. Era como se depois de tanto fluxo mental o cérebro suspirasse, só preocupado em manter por alguns poucos segundos a mente clara e depois disso recomeçar o trabalho. Trabalho que agora consiste em absorver o ambiente.

A cama desforrada iluminada pelo azul assemelhava-se a um mar revolto com suas ondulações disformes. A cabeceira seria uma enorme montanha, um precipício. Lá em cima um ponto negro, talvez algum pequeno inseto, seria um jovem triste que acabara de ler Goethe e se encontrava num total estado de solidão. Nos criados-mudos exibiam-se dois belos abajures brancos com uma iluminação fraquíssima, quase inexistente. Do outro lado do quarto um sofá antigo que mantinha um tom vermelho sangue muito desbotado encostado na parede oposta à entrada. Em frente ao sofá, quase encostado, o divã. Aquele divã vermelhíssimo que ela trouxera de uma das viagens à Europa com uma pintura dourada sobre a madeira repleta de afrescos que desbotava ainda mais a cor do outro, o velho sofá. Nas paredes quadros do período neoclássico retratando vastos campos e retratos renascentistas maravilhosos de senhoritas que hoje só aspiram a beleza da morte e da inexistência.

Mas o retrato perfeito se apresentava bem a sua frente. Ela, vestida com um trapo branco semi-transparente que lhe assentava como seda deixando nuas as costas magras. Estava extremamente pálida, e por mais que as violetas estivassem cheias de poeira ainda destacavam-se mais do que aquele corpo branco e diáfano. Não podia negar que ela era bela, mas a doença e a loucura a deterioraram deixando apenas os olhos verdes e os cabelos ruivos, vivos e transtornados, como lembrança da perfeição da qual ela era dotada. A poeira parou completamente seu movimento como se congelasse instantaneamente. Á frente dela estava um enorme espelho emoldurado em bronze e ela fitava-o, séria, através dele.

Sem saber como agir e sentindo-se encurralado por aqueles olhos cortantes ele empalideceu. Ficara tão branco quanto ela. Dera um passo para trás, mecanicamente, como se os olhos daquela mulher fossem esmeraldas lapidadas em forma de lanças. Eram dois fantasmas a se fitar. A se observar mutuamente sem dizer uma palavra, mas sabendo no fundo, qual seria a próxima atitude do outro.

Como se ele estivesse petrificado ela decidiu agir e levantou-se suavemente da cadeira onde jazia, próxima á cômoda. Sem desviar os olhos do intruso deslizou a ponta dos dedos por sobre a cômoda e entreabriu os lábios descolorados. Apertou os olhos numa sensação de confusão e gozo. Agora mais do que nunca ela conseguira congela-lo. Virou a cabeça vagarosamente em sua direção. Isso tudo ela fazia com uma sensualidade descomunal. Quem a visse pela primeira vez nunca poderia supor o quão cruel era esse jogo que ela realizava e como era humilhante seu desfecho, e ela o realizava sempre que podia. Se não para outrem, para ela própria, testando-se. Já a essa altura caminhava ela na direção do intruso. Caminhar entretanto não é uma expressão utilizável para a majestosa maneira com a qual ela se locomovia. Ela flutuava elegantemente e como que se quisessem acompanhá-la, as partículas de poeira movimentaram-se no seu ritmo, suave e, sobretudo, sensual. Ou seria ela que seguia a poeira que reiniciava o seu balé? Seja como for, ela possuía esse dom de tornar sensuais as pequenas coisas. Esse poder de tornar tudo a seu favor com apenas um toque, um olhar, ou um suspiro. Mas tudo isso era premeditado. Já se era sabido e a tensão no ar tornou-se insuportável e ele arfava até que a explosão tornou-se irreprimível.

- Iohanna serviu o desjejum!

O eco reverberava pelo aposento como uma sentença de morte irremediável.

Ele não pôde conter-se. Se continuasse calado seria atingido pelo demônio da loucura que tanto desprezava naquela mulher. Por isso arrancou do íntimo, do inatingível, forças para cumprir o que lhe haviam ordenado. O grito fora desmedido e atingira um tom de desespero incontido. Saíra como a lufada de ar de um blasfemo. Tão estridente que ultrapassara às paredes do quarto e estendera-se por toda a casa chegando aos ouvidos de todos, quebrando o silêncio como um copo de vidro a estraçalhar-se no chão. Ela conseguira novamente. Humilhara-o sem dizer uma palavra. Satisfeita, esfregou a ponta dos dedos no rosto do intruso deixando um pó cinza acumulado em sua face. Voltou à cômoda e sentou-se indiferente a tudo e a todos. Com os olhos repletos de lágrimas ele saiu do quarto e correu em direção à cozinha. Ela não faria o desjejum mais uma vez. A porta fechou-se sozinha.

Um comentário:

Unknown disse...

hmmm, há muitas coisas pra se comentar sobre o txt, tenho certeza q nao vou lembrar nem da metade :/
tem muito potencial sabe, umas coisas bem feitas mesmo, e outras q nao gosto tanto.
adoro e começo, adoro adoro. a poeira e tudo o mais, é foda. mas nao gosto mto qdo ela toma caracteristicas quase de gente, acho psicodelico e tosco demais, forçoso. nao entendo a parte q vc diz que ela se desespera.
engraçado q vc falou em balé desgovernado e uma vez num txt meu eu escrevi algo parecido, faz tempo, balé atrofiado.
gosto do desconforto "dele" quando entra no quarto e se depara com "ela".
tem uma frase q achei tosca sobre educação européia, hehe,achei mei nada a ver com o resto do txt.
nao gosto do final magico da mulé sensual hehe. e qdo vc diz "isso td ela fazia com uma sensualidade descomunal" era melhor q vc nao dissesse exatamente isso e através de outros detalhes desse a entender isso.
pronto, comentei tudo q me lembro, hehe.
acho foda o começo, mais ou menos até a metade do txt eu acho.
beeijo