segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Ensaio sobre o desespero

O desespero se levantou da cama naquela manhã e roeu a cal das paredes.

O desespero comeu o cimento das reentrâncias, o fosfato dos tijolos e a tinta fresca. Lambeu os lábios secos e os filetes de sangue quente. O desespero rangeu os dentes e roeu as unhas dos dedos dos pés, arrancou as cutículas e as cascas das feridas até que não sobrasse coisa alguma.

O desespero como um glutão comeu meu café da manhã, meu almoço e meu jantar para depois vomitar palavras de arrependimento. O desespero comeu o arrependimento e esfregou os dedos no tampo do sanitário.

O desespero aspirou meus pós e bebeu meu vinho. E derrubou a taça que encarnou a toalha de mesa. Que rasgou-se em trapos que virou-se a mesa que atirou-se pela janela encarnando a calçada com um tom suave de criança.

O desespero tomou meus analgésicos, meus anestésicos, meus narcóticos e meus tranqüilizantes. O desespero tomou todos os meus tranqüilizantes. E tomou-me pela mão docemente até arrancar meus braços. E caminhamos lentamente até alejar-me as pernas.

Mas o desespero anorexo quebrava os próprios ossos se jogando contra a parede ininterruptamente em um êxtase de agonia profunda. E ele o fez até devorar a parede inteira.

O desespero calçou as sapatilhas e dançou o lago dos cisnes até cair de exaustão nos cacos de vidro. O desespero mastigava os cacos de vidro.

E saiu às ruas gritando para ficar mudo, chorando para ficar cego e apenas ouvindo a indiferença para ficar surdo. O desespero furou a garganta, os olhos e os tímpanos, mas ainda assim podia sentir a indiferença.

Subiu as escadas agonizando no acrílico. Apoiou-se nos corrimões cuspidos. Caiu de cara na própria acidez do solo. Não havia tapetes.

O desespero não acharia aconchego nos tapetes, nem nos gritos, nem no vômito nem na cal das paredes. O desespero comeu minha paciência, minha tranqüilidade, meus filhos e minha decência. O desespero comeu minha existência.

No fim de todos os dias quero acreditar que o desespero sou tudo, menos eu.

3 comentários:

Unknown disse...

highlight - "Mas o desespero anorexo quebrava os próprios ossos se jogando contra a parede ininterruptamente em um êxtase de agonia profunda. E ele o fez até devorar a parede inteira."

sim, o texto é bem parecido com o do amor do joao cabral né, hehe, isso faz ele perder um pouco de crédito, mas achei legal o jeito como o desespero se confundiu com vc e tomou forma de gente =}

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

Veja bem,
"O desespero se levantou da cama naquela manhã e roeu a cal das paredes." (essa parte inicial deu-me uma idéia de decadência que se encaixa bem em desespero, a cal roída é a percepção momentânea de uma ação que se dá muito lentamente, começar com uma decadência implícita foi perspicaz)
"...sangue quente..." (fiquei pensando se não seria melhor frio, daria um ar mais mórbido, mas quente é melhor se considerarmos o desespero que se desespera em continuar vivo e percebe que dia após dia o sangue está quente correndo pelas veias)
"...com um tom suave de criança." (suavidade não combina com desespero)
"E tomou-me pela mão docemente até arrancar meus braços." (docemente? eu gostei da frase, mas acho que sutilmente ficaria melhor)
"E caminhamos lentamente até alejar-me as pernas." (adorei a idéia de um caminhar pesado)
"...êxtase de agonia profunda." (isso é, literalmente, desespero)
"E ele o fez até devorar a parede inteira." (a colocação dessa frase não ficou boa)
"...e dançou o lago dos cisnes..." (quem sabe um tango tenha uma vibração mais condizente?)
"...corrimões cuspidos." (desprezo? gostei disso)
"O desespero comeu minha paciência, minha tranqüilidade, meus filhos e minha decência." (acho que essa parte destoa de todo o resto e ficou meio estranha, talvez piegas demais)
"No fim de todos os dias quero acreditar que o desespero sou tudo, menos eu." (perfeito o final)

No geral o texto é linear, com algumas descontinuidades,não sei se propositais para melhor enfatizar, mas a ordem do que desespera conta muito, é justamente o descontínuo que dá uma idéia de caos próprio ao desespero.
O que eu mais gostei do texto foram
as riquezas nos detalhes, é como se o desespero tentasse se ater as pequenas coisas na tentativa de sobreviver através da mediocridade.
A mensagem foi passada, mas faltou um pouco mais de angústia, você descreveu muito bem o desespero, mas não sentiu. É como descrever um quadro sem nunca ter pintado.
Basicamente é isso,você escreve muito bem e eu gostei bastante dos teus detalhes e do teu vocabulário.

(kali etrom)