Um copo de melancolia suava na manhã gelada e as gotas sussurravam lá fora que seria inútil fechar as janelas: a tempestade era interna.
Talvez por isso ela tenha deixado a porta aberta, os trincos frouxos as janelas exaltadas na penumbra da noite anterior. Não importava quantas tormentas entrassem, mais haviam de sair. E quanto mais saíssem mais a casa seria o vazio auto-suficiente que ela esperava.
Mas nunca ela se esvaziava. Por mais móveis brancos, por mais cortinas limpas, por mais pisos mármore puro como cocaína e cocaína pura como olhos encharcados. Por mais que ela estivesse seca. Ainda persistia a mancha dela mesma naquele lugar sagrado que ela reservara para si e que consigo mesma tornava-se impuro e irrespirável. Ela era sua própria mancha negra. Ela e aqueles pés imundos, e aqueles joelhos escurecidos e aquelas mãos secas. Tão secas. Seca como um deserto que ela fosse obrigada a carregar no paradoxo das chuvas.
Fora isso ainda tinha aquela boca. A maldita. Inútil aquela boca. Minúscula como um grão mostarda, insípida, frustrada, pálida, odiável e, simplesmente... inútil. Toda ela, os dentes a língua as abóbadas celestes que revestem essa horribilidade fatigante de céu. Tudo que ela desejava é que ela explodisse em reviravoltas de luz e se reproduzissem estrondos vermelhos e rios de seiva de seus lábios e ela tivesse seus arrebóis contínuos, espontâneos e irreprimíveis. E como ela queria... Mas não se dá em árvore infrutífera o desabrochar de qualquer tipo de flor olorosa. E dolorosa ela persistiu na inquietude que é o conformismo pela qual não queria passar.
E nas chaves de prata reluzentes na mesa de mogno refletia-se o seu rosto estranhamente deformado. A disformidade das chaves lhe dava a perspectiva certa de seu projeto, de seu protótipo de mulher que queria para si apenas a possibilidade de morar consigo mesma dentro das mesmas paredes internas. Ela era toda o desejo de seu reflexo nas chaves. Chaves finas e agudas como a ponta de um alfinete refletindo o divindade que queria possuir.
Quantos anjos podem dançar na ponta de um alfinete? Perguntava-se enquanto via um reflexo que era o seu mas não era o seu era de outra que ela queria que fosse ela respirasse nela e sentisse nela entrasse e se instalasse em suas entranhas profundamente e a aliviasse. Uma acupuntura de agulhas humanas em veias humanas em pele humana. Ela só queria ser humana. Sendo humana poderia possuir tudo que estava ao seu redor, inclusive seu mármore, suas cortinas, seus desejos, seus vícios, si mesma.
Um toque na campainha.
O reflexo se torna um espiral de cacos que se revoluteiam caoticamente, um tornado cortante e lascivo que lhe escapole à mente deixando um buraco enorme e sangrento.
Suas mãos antes secas suam e os cremes formam um lamaçal de estética fluída que pinga no tapete de pele de urso polar. E seus olhos tornaram enormes e saltaram às órbitas e ela viu eles próprios e viu que tornara seu cômodo sagrado impuro.
Aquela gota imunda desceu ao solo sagrado e ela via a escuridão se apoderando daquele ambiente repentinamente e ela se asfixiou naquela impureza dela mesma. Correu para as escadas tentando o andar superior. Talvez a impureza poupe as escadas e o mármore. Mas a impureza de si mesma não é como qualquer outra. Ela não fica estanque, ela persegue o dono como uma tentativa de restituir-se ao seu corpo. Torna ao impuro o que é impuro. As escadas, os tapetes, a porta do quarto, os pés da cama, o parapeito da janela. Tudo impuro e ela havia se alastrando e amaldiçoando tudo.
Naquele instante, no parapeito da janela, ela viu um clarão . Serpentes flamejantes em forma de fios elétricos revolucionam as ruas lá embaixo. E ela vê, pela primeira vez, a luz. Aquilo que ela ansiava se oferecendo lasciva na sua frente, irredutível, convidativa. Os pés apoiaram-se no parapeito e ela respirou fundo como se fosse sentir aromas ínfimos. O odor da luz pura. O cheiro de sua essência em fios luminosos. Ela em fios luminosos. Sentindo o vento as frases e as incompreensões do mundo. E o mundo em luz só para ela. Tudo é luz até os sons. E os sons são campainhas que desfazem em cacos os vasos de violetas sem alma.
E ela?