domingo, 2 de março de 2008

Palhaço

Sempre tive paixão por incendiar palhaços.

Na infância um deles tocou minha mão e me olhou com o rosto manchado: ele era todo fogo. E ardeu até as cinzas com a frieza do meu incêndio.

Incêndio frio como a resposta crua e sinceramente cortante de uma criança.

Quando éramos só nós, eu e você, eu ardia no seu fogo, agora tenho de incendiar aos outros para acender em mim uma centelha.

O palhaço é a centelha maior de minha satisfação.

E a satisfação é alcançada pelo cheiro do carvão puro.

Um dia minha amada me apresentou ao circo, e ele me devorou até o solstício de inverno, quando a chama se apagou por apenas um instante e o frio penetrou o negro dos meus olhos. E na escuridão da plenitude que é um olho recém descoberto vi a sombra do olho de um outro alguém. Um alguém que tirava do pó a cobertura de sua face e do sangue antigo a tintura de sua narinas. Naquele momento ele sorriu, debochado, destemido, o peito desabotoado. Sorria faceiro como um menino. Sorria ligeiro como as cegonhas grávidas de crianças imaginárias. Sorriu para ela.

E ela devolveu-lhe com um sorriso canhoto e aberto. Aérea.

Na descida do picadeiro vi os dentes de um palhaço que os meus olhos engoliram numa ânsia ruidosa de amor despedaçado.

Mas o amor serve aos olhos e os olhos ao amor e diante do desterro eu previ o flagelo.

Saiu da cauda do menor do flagelado vivo, e atacou a todos os flagelados do circo. Minha centelha se anunciava brutal.

E o palhaço não viu seu corpo arder. Pois o fogo que o consumia era azul e os olhos dos flagelado não podem ver o azul do fogo. Mas podiam sentir. E enquanto os olhos do palhaço rejubilavam na agonia do fogo minha amada derramou uma lágrima.

E dentro da lágrima dela o meu universo. Límpido, e nu.

Bastaria aquela lágrima para apagar o incêndio do palhaço.

Mas as lágrimas tem sal, e até que me provem o contrário, eu também posso incendiar o sal. Mas quando se carboniza o sal, a chama muda de cor e se torna laranja e vermelha. E os flagelados podem ver a chama vermelha. E viram.

O desespero é uma bola brincando com uma criança num pátio. O desespero é a bola quando a criança explode.

E no fogo trêmulo um elefante levantou as patas e balançou a cabeça suave como se estivesse querendo dizer algo necessário na sua língua de elefante. O elefante porém era mudo até em sua língua. E ao perceber isto tornou-se indiferente para com o incêndio do palhaço. Deu meio volta no próprio corpo e saiu pelos fundos. Na ponta dos pés como uma bailarina obesa de rum.

O século que demorou para que aquilo se consumisse, meu deus... O século que durou para que passasse a tormenta. O século que demorou para recolher os escombros! O século é apenas um século. Um segundo é a eternidade. E a eternidade é cada segundo sem os olhos dela.

Sempre tive paixão por incendiar palhaços.

Hoje incendeio a falta dos seus olhos.

2 comentários:

Unknown disse...

mario, achei o texto legal, mas um bocado confuso. sou a favor das imagens estranhas, aliás, adoro elas, mas elas sao mais legais quando vc desemborca elas e vê a significância, mesmo que essa significancia nao esteja na cara ou seja mto óbvia.
mas tem umas coisas mto massa no seu texto, incendiar palhaços, caos no circo, bailarina gorda de rum, hehe, umas coisas bem legais.
ah, tem algumas confusoes quanto a pessoa (narrador) do txt tb, nao sei se foi proposital, mas achei meio off.
é isso, gostei! vou ler mais algo aqui :D

Bruno Wanger disse...

Belo texto, que coloca a criança na qualidade mais angelical possível, em comparado ao desfigurado palhaço. Só não acho que haja mais maldade na chama corrompida deste do que no fogo límpido da “inocente” criança. Acredito que, em seus âmbitos, elas se equivalham... Um triste homem por trás daquele pó branco e impiedoso de seu destino não pode ser punido, acredito, com chamas invisíveis de pureza. Muitas vezes, o contrário disso é maior verdade. Quero dizer que o palhaço pode ser uma totalidade em angústia, e não ter culpa disso, e que suas expressões atormentadoras podem ser, em parte, justificáveis. Mas que se fique claro: não defendo covardias! ... E um sonho despedaçado é um ato covarde.
"CRIANÇAS PODEM SER PALHAÇOS, DE PÓ BRANCO, DISFARÇADAS."