domingo, 6 de julho de 2008

Quando as formigas epifanizam.

A formiga veio da reentrância, assim como todas as outras. Como todas as outras pálida e insubstancial. Revelava-se nua em sua transparência e na ausência de movimentos frenéticos nas patas anoréxicas. Transpirava um suor de formiga, fino e vermelho, e essa materialidade líquida de seus poros a impedia de pender para a inexistência: a suprema constante teleológica da formiga.

No inconformismo que é a consciência da própria materialidade, a formiga prosseguiu em sua jornada diária através das migalhas alheias. Sua vida sempre fora de certa maneira a mesma e ela jamais reclamara em sua língua de formiga: não seria ouvida no mar revoluto de irmãs canibais. Além do que, desde sempre soube que o silêncio é mãe das criaturas desgraçadas, e se não quisesse perecer nas circunvoluções de seu próprio habitat deveria ouvir os conselhos mudos dessa maternidade entorpecida de pensamentos corrompidos.

Depois da estaticidade momentânea causada pela consciência da corruptibilidade de seu pensamento a formiga alcançou o solo infértil de azulejos amarelos. E ao desaparecer na palidez do solo, sentiu-se maravilhosa por deixar de ser formiga e elevar-se ao status de azulejo. E ela não sabia o que era ser azulejo, mas preferia a estabilidade daquela existência à insegurança de suas seis pernas anoréxicas.

A formiga agora voltada em azulejo sentia mais de perto o cheiro doce do destino incondicional. O paraíso em rejuntes envelhecidos e açucarados. A formiga-azulejo adentrou os rejuntes açucarados e saboreou gulosa cada uma das partículas. E sentiu entrar em seu corpo a saliva adocicada . Insatisfeita avançou em pedaços maiores e maiores até saborear o que ela definiria posteriormente como a fluência insípida de um alheio.

No instante ela só pensou que aquilo não satisfazia suas necessidades e afastou-se, mas ao afastar-se viu com seus olhos de formiga seus lábios de formiga vermelhos como suores muitíssimos. E incompreendendo aquela situação voltou-se novamente para a fonte insípida e percebeu que a substância avançara. Ela não conhecia aquilo. Em toda sua vida de formiga nunca bebera de algo semelhante que se movimentasse. Algo, vivo.. E enquanto refletia, via aquela vermelhidão espelhada corroendo tudo, todo o significante amarelo. Todo o azulejo. Ela própria. Ela não deixara de ser azulejo, porque estava manchada, assim como ele, mas não queria estar manchada. Já o fora a vida toda com o estigma de formiga. Mais um passo para trás. A vida toda ridicularizada por pertencer a uma classe sem regalias. Outro passo. Sem sequer ter o direito de ser chamada classe. Seus pés molharam-se do vermelho. E com medo de afogar-se ela correu desgovernada. Os olhos de formiga cerrados como janelas tempestuosas. A aceleração ininterrupta. Os suores muitíssimos escorrendo. A imprecisão. Os olhos abertos. Os olhos alheios. Os olhos azuis.

Deveria sentir que deveria fugir. Mas não sentiu coisa alguma. Deveria ao menos apavorar-se. Mas os olhos alheios lhe pediam calma. No reflexo dos olhos negros da formiga, dois olhos azuis, humanos como as criaturas desse mundo, inexistentes como a formiga no azulejo amarelo. Duas criaturas inexistentes a encarar-se mutuamente. Os olhares e as reciprocidades indizíveis. Mas apenas uma compreendeu os olhos da outra.

E a formiga assumiu a morte dos olhos alheios e chorou uma lágrima que não podia ser dela. Mas foi.

A formiga não via sentido no que os sentidos lhe indicavam. Não conseguia compreender como sua felicidade instantânea pôde estar próximo da inexistência de outro. Será que o outro queria a inexistência almejada pela formiga? Será que ele mesmo fez aquilo consigo mesmo? A formiga não entendia. E por incompreender como seu desejo se tornara a realidade do alheio a formiga buscou uma explicação e refletiu assumindo que seu destino estava vinculado à morte daquele alheio. Que de alguma maneira obscura ela era responsável pelo acontecido. E a única resposta que lhe ocorria é que o alheio fora amaldiçoado por ela abandonar o seu status de formiga . E essa era a maldição da formiga: ela não poderia ser inexistente, às custas da inexistência dos outros.

Na ocorrência do fato, formiga arrefeceu.

Não agüentava mais olhar para o seu próprio rosto de formiga refletido nos vitrais azulados.

Ela deu meia volta, limpou a boca vermelha e carregou uma partícula açucarada nas costas retornando para a begidez da parede. Ela permaneceu calada, confusa, perplexa. Inequilibrável nas patas anoréxicas agora ainda mais finas. E por fim, sem reconhecer o caminho adentrou na reentrância obscura.

Nesse dia, com sentimentos de culpa revoluteante, a formiga prometeu que nunca mais abandonaria seu status de formiga no azulejo amarelo, para que os seres alheios não mais abandonassem o status de existentes. E ao retirar de si sua felicidade diária, a formiga entregou-se à sua mãe muda e bastarda. Definitivamente.

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