Emilie Simon, Le vieil amant (o velho amante)
Meu amor eu pensei
O mês de Maio Às vezes Às vezes... Ele está partido, o tempo
O mês de Maio Às vezes... Eu quero lhe confessar Meu amor tenho pensado O mês de Maio |
Meu amor eu pensei
O mês de Maio Às vezes Às vezes... Ele está partido, o tempo
O mês de Maio Às vezes... Eu quero lhe confessar Meu amor tenho pensado O mês de Maio |
Lá fora, um jovem embriagado anunciando sua busca por independência. Temo que as coisas quando anunciadas tornem-se os clichês mais ridículos. Hoje considero a independência algo ridículo.
Na manhã do dia indizível acreditava piamente que a independência se manifestava em mim de modo incomensurável. Para mim independência era ouvir Aretha Franklin enquanto um ônibus inteiro era obrigado a satisfazer-se com os grunhidos da máquina de aço que os engolia e cuspia em seus determinados pontos.
Na minha ignorância de ser humano acreditava que independência era ganhar dinheiro suficiente para comprar um apartamento em um condomínio restrito e decorá-lo com vasos chineses.
E a independência independente de mim era um absurdo que eu negava ver como absurdo. Ela queria que eu descesse do ônibus no próximo ponto e voltasse para casa, assistisse a programação da tv á cabo e mudasse de canal a cada quinze segundos. A independência queria me levar para a casa dela e deita-la comigo em um colchão macio até a madrugada do dia seguinte.
No dia seguinte eu assistiria a aula.
Mas no dia seguinte e nos dias depois do dia seguinte se daria a mesma coisa e a mesma coisa e eu me consideraria o homem mais independente do mundo.
A independência queria que eu tivesse um quarto só para mim e que ligasse e desligasse o ventilador quando eu bem quisesse. E se o ventilador explodisse que eu pudesse aspirar as cinzas.
E a independência queria que eu pudesse escolher entre a minha vida e a vida dos outros sempre optando por uma vida que nem era minha nem era do outro.Era uma vida neutra que deixava que meu conceito de independência decidisse tudo. E a única coisa que eu decidia era a ideologia que eu seguiria. Na verdade nem isso.
Tudo era um conceito pré-formado de ideologias de outros e eu creditava a mim, por acreditar que era eu o fundador delas. Um conjunto de idéias pré-definidas por outros. Que ódio cometer plágio ideológico. Falta de leitura talvez. Talvez excesso. Talvez cegueira intelectual.
E a cegueira já havia corroído todos os sentidos, eu era seguidor de minha ideologia da independência e como um escravo queria obedecê-la anarquicamente através de uma série de regras que ela me impunha. E todos os ditames contrários eram regimes disciplinares absurdos e estúpidos e completamente ridículos. E eu não percebia que criava dentro de mim o regime mais disciplinar de todos. As leis de minha independência. E preso a essa premissa existencial dei sorte por conseguir corroer meu próprio sistema. Muita sorte. Deu-se numa tarde após o dia indizível. Quando tomei as últimas gotas da garrafa e saí à rua numa epifania escandalosa mostrando aos outros o resultado da minha ideologia independencialista.
E todos observaram de suas janelas, espantados e envergonhados, e apontavam, cochichando pausadamente ou comentando no seio da família:
Lá fora, um jovem embriagado anunciando sua busca por independência.
Sempre tive paixão por incendiar palhaços.
Na infância um deles tocou minha mão e me olhou com o rosto manchado: ele era todo fogo. E ardeu até as cinzas com a frieza do meu incêndio.
Incêndio frio como a resposta crua e sinceramente cortante de uma criança.
Quando éramos só nós, eu e você, eu ardia no seu fogo, agora tenho de incendiar aos outros para acender em mim uma centelha.
O palhaço é a centelha maior de minha satisfação.
E a satisfação é alcançada pelo cheiro do carvão puro.
Um dia minha amada me apresentou ao circo, e ele me devorou até o solstício de inverno, quando a chama se apagou por apenas um instante e o frio penetrou o negro dos meus olhos. E na escuridão da plenitude que é um olho recém descoberto vi a sombra do olho de um outro alguém. Um alguém que tirava do pó a cobertura de sua face e do sangue antigo a tintura de sua narinas. Naquele momento ele sorriu, debochado, destemido, o peito desabotoado. Sorria faceiro como um menino. Sorria ligeiro como as cegonhas grávidas de crianças imaginárias. Sorriu para ela.
E ela devolveu-lhe com um sorriso canhoto e aberto. Aérea.
Na descida do picadeiro vi os dentes de um palhaço que os meus olhos engoliram numa ânsia ruidosa de amor despedaçado.
Mas o amor serve aos olhos e os olhos ao amor e diante do desterro eu previ o flagelo.
Saiu da cauda do menor do flagelado vivo, e atacou a todos os flagelados do circo. Minha centelha se anunciava brutal.
E o palhaço não viu seu corpo arder. Pois o fogo que o consumia era azul e os olhos dos flagelado não podem ver o azul do fogo. Mas podiam sentir. E enquanto os olhos do palhaço rejubilavam na agonia do fogo minha amada derramou uma lágrima.
E dentro da lágrima dela o meu universo. Límpido, e nu.
Bastaria aquela lágrima para apagar o incêndio do palhaço.
Mas as lágrimas tem sal, e até que me provem o contrário, eu também posso incendiar o sal. Mas quando se carboniza o sal, a chama muda de cor e se torna laranja e vermelha. E os flagelados podem ver a chama vermelha. E viram.
O desespero é uma bola brincando com uma criança num pátio. O desespero é a bola quando a criança explode.
E no fogo trêmulo um elefante levantou as patas e balançou a cabeça suave como se estivesse querendo dizer algo necessário na sua língua de elefante. O elefante porém era mudo até em sua língua. E ao perceber isto tornou-se indiferente para com o incêndio do palhaço. Deu meio volta no próprio corpo e saiu pelos fundos. Na ponta dos pés como uma bailarina obesa de rum.
O século que demorou para que aquilo se consumisse, meu deus... O século que durou para que passasse a tormenta. O século que demorou para recolher os escombros! O século é apenas um século. Um segundo é a eternidade. E a eternidade é cada segundo sem os olhos dela.
Sempre tive paixão por incendiar palhaços.
Hoje incendeio a falta dos seus olhos.