quarta-feira, 30 de maio de 2012
As Horas
O que faço eu, com o tempo imenso entre nós dois?
Que a vida contabiliza em seu ritmo marcial?
Marcando em ínfimos ponteiros, as viradas de janeiros
Que acontecem o ano inteiro, sem trégua de carnaval?
Eu convivo diariamente com a ameaça de um final
O qual anseio, se proceda, num momento tão depois
Marcando em meu desespero, marcando-me por inteiro
Mas só quando não houver mais meio, de vigiar o que se sobrepôs...
“Há sempre os anos entre nós
Sempre os anos,
Sempre o amor,
Sempre as horas”.
domingo, 8 de abril de 2012
Dinner
- Why everything available is likely to be disposal?
- 'Cause one just cannot disposal what is impossible to gain.
- 'Cause one just cannot disposal what is impossible to gain.
domingo, 12 de fevereiro de 2012
As iconoclastas
Após o anúncio, as três permaneceram na quietude de seus afazeres, sem emitir ruído ou som de qualquer espécie. Aspiravam lentamente o ar estagnado do cômodo como quem espera com a própria imobilidade conservar o tempo em seus ponteiros preguiçosos, conservar a poeira estanque na superfície dos móveis e os ecos sinistros a reverberar pelos quatro cantos da sala. Os ecos proferidos pela voz triunfante da criada, Vossa mãe - dizia exasperada - vossa mãe está morta!
Amparada no portal de mogno, com o rosto desfigurado pelo crepúsculo, a pobre serviçal esperava ansiosa das três gárgulas augustas algum sinal de que fora compreendida em sua mensagem. Enquanto aguardava ofegante por uma réplica, a luz do poente adentrava pelo hiato da porta, descortinando a cena e tornando-a movediça em sua quântica essência, revelando antes da hora, sua inquieta permanência.
Na atmosfera do cômodo, minúsculas partículas desprendidas de suas superfícies rebelavam-se contra a claridade violenta da luz. Sua dança atravessada pela luminosidade incandescente dava ao ambiente o tom de um espetáculo que se havia anunciado desde tempos imemoriais. Na mesa de centro, o vítreo espelho refletia um teto vazio de qualquer apontamento, não fosse o regozijo com que a clarabóia de seus olhos presenciava, por vez ou outra, indiscretos acontecimentos. O lustre magno, mais adiante do teto, reluzia em suas pequenas pedrarias a luminescência do entardecer em cores múltiplas, deixando aos poucos a retina dos retratos se acostumar aos seus artifícios visuais.
À direita da porta, um enorme vão encaminha às escadas de onde se ouvia no passado os passos da grande matriarca. Todos os dias, sua presença se fazia sentir nos anexos da sala, a observar e controlar das crias cada impulso latejante. Pois que não havia desejo que se pudesse exprimir perante os olhos convexos da mãe. Um olhar que tudo dizia sem ao menos proferir palavra. Esses mesmos olhos que encheram a casa das repressões morais dos bons costumes católicos faziam crer na diabólica essência do enunciado, que a todo custo deveria ser evitado, a fim de que se alcançasse a redenção silenciosa.
Do lado oposto do cômodo, rodeado por esquecidas velas brancas, o altarzinho da santa emanava das flores secas. Abandonada desde a enfermidade, fora outrora uma grande aliada assim como as demais réplicas espalhadas pela casa. Ciente de sua limitação humana, a mãe almejava expandir a vigilância para além da sua própria presença: foi quando conheceu a ciência de vigiar por olhos alheios aquilo que lhe cabia, fazendo emergir da austeridade da casa suas mais novas companhias. Sombras e imagens de virgens e meninos alados, de mártires mergulhados em sangue vivo de tinta opaca, ícones santificados daquela desgraça que reivindicava da vigília constante seu devido peso. Pois aquelas imagens lembravam a todo o momento que na ausência dos olhos da mãe bastavam os olhos de gesso. Aquelas estátuas e seus simbolismos arcaicos. O simbolismo do silêncio que não dá lugar à palavra. A produção de uma angústia diária, a se acumular pelas vísceras e irromper na ponta dos dedos. E assim foram se fazendo as três irmãs naquele sobrado: sob os olhares aflitos de santos consternados.
No centro do cômodo, sobre o sofá, a concretude do desejo materno em rendas de ponto-cruz. As três imagens sacro-santas, iluminadas pelo poente, a coser em seus colos inférteis os fios de uma tarde irrisória. Incólumes em seus longos vestidos matronais e de cores desbotadas perfaziam cada ponto com a mesma mobilidade maquinária, perfurando a tez compacta do tecido cautelosamente, em um misto de agonia e paciência, cultuando nesse ritual as coisas em sua constante indiferença. Cresceram envoltas no mistério da existência própria: tudo que lhes era admitido era o movimento constante da agulha, que entrava e saía obscena da tela em branco. Foram elas limitadas ao som opaco dessa sina, no tardar das horas do dia, ininterruptamente.
Todo este tempo se passara sem que pronunciassem a mínima palavra e enquanto ainda a morte ecoava no silêncio sepulcro das irmãs, a empregada desfalecia lentamente, escorregando pelos veios da madeira. Sua mão sinuosa acompanhando a seiva morta, os dedos incitando as farpas microscópicas e o sangue alheio jorrando invisível pelas frestas escuras de sua alma dilacerada. Alma que alcançara o solo sem ouvir das irmãs o enunciado da palavra. Eis que o silêncio das irmãs nunca fora tão arrebatador. O silêncio punhal no ventre febril da criada assassinava a mensageira agourenta como em tempos ancestrais. O silêncio sem vida, sem sinais. E a ausência de sinais provocara-lhe os arrepios mais perniciosos. Tanto mais eloqüentes quanto maior o sigilo de sua grande dor. A dor de uma paixão aniquilada. A dor de um abandono inventado. Imaginário. E mesmo assim, ressentido.
Quando soubera da notícia e vira os pés da morta, correra desesperada para contar às três efígies entorpecidas que se esvaiu de vez a grande mãe e seus grandes olhos. Esperava delas o consolo que não recebera da enfermaria vazia, crente na reciprocidade de seu sentimento. Esperava imitar do olhar das irmãs a expressão de amargura que se fazia no peito comovente. Mas a lágrima deslizante da tormenta só brotou na ingenuidade de sua figura. Nada fora expresso pelas três criaturas de gelo. Na ausência de resposta, tudo o que restou foi a explosão do seu desespero.
Foi quando deu-se o revertério a soar agudo nos tímpanos e as irmãs não puderam sustentar o silêncio em sua completude. Depois de todos aqueles anos, não podiam reprimir a guturalidade da voz que se manifestava no peito recoberto da criada exigindo das amas uma atitude ou posição qualquer que lhe amenizasse o desconforto da morte anunciada. O som remoto daquelas profundezas cavernosas produziu então um grito incomensurável dissolvendo a servente em partículas de som. E o som reverberou nas cortinas, incontrolável. Estremeceu as estruturas dos vitrais e do aço. Arrancou dos próprios dedos a farpa de unha e sangue. Abalara o piso e o cismo abalara as santas. O grito não causara as rachaduras, mas tornara-as, finalmente, visíveis aos olhos de todas.
Tudo que acontecera depois pode-se dizer que fora conseqüência desse grito ou de milhões de gritos, súplicas, confissões, declarações e alaridos aglutinados e reprimidos que só foram finalmente devolvidos ao mundo quando não havia mais remédio ou solução. Na insistência infernal desse gemido, as três irmãs, por fim, se fizeram vivas em sua vagarosa agitação, que mal se confundia com um quase movimento. Cessaram a costura e repousaram as agulhas sobre o tecido com a consciência de que o protocolo fora quebrado e nada mais se podia fazer sobre isso. Elevaram suavemente a cabeça como quem não tem pressa em alcançar o topo, como quem aprecia a paisagem, deglutindo-a lentamente para retirar do sumo a essência represada. Quando os olhos alcançaram a criada, jazia de joelhos no vão da porta, com os cabelos despenteados e as feições de uma morta, a lágrima descendo do rosto, perfazendo o percurso do queixo e deslizando suavemente até se esvair no mundo subterrâneo do seu vestido de servente.
Lançaram à ela olhares vazios de qualquer sentimento. Vazios de compaixão e de qualquer expressividade. Vazios de arrependimentos. Mesmo sem ter a resposta que almejava, a criada queria dizer-lhes que sentia muito. Mas não precisava. Todas ouviram a angústia extravasada pelos poros e pela garganta dilacerada. Dessa vez, as palavras não eram necessárias, pois que se o grito da empregada soara mais alto que o silêncio das irmãs, é porque fora rompido laço maior que o laço sanguíneo. Mas nada seria descrito. E novamente, tudo seria obliterado e devidamente esquecido.
Observaram por entre alguns minutos a boneca quebrada sentada no umbral, no limiar da culpa e da absolvição, esperando que elas finalmente tomassem a frente e liberassem-na de seu fardo. Mas elas esperaram pacientemente até que a criada se acalmasse e depois inclinaram as cabeças para a luz, assim permanecendo imutavelmente.
Após o desfalecimento da servente, as três se entreolharam como cúmplices de um delito infantil. Agora, sabiam o que deveria ser feito. O que planejaram durante todos os anos por baixo dos olhos ferinos da mãe seria finalmente posto em prática, a malignidade que desde sempre arquitetavam. Foi então que, sóbrias como a luz que lhes atravessava, encaminharam-se para os quartos, para a cozinha e para os banheiros, extraindo de seus conteúdos cada escapulário, cada santinho com seus cordeiros, cada mosaico da virgem, cada afresco angelical, cada quadro e estatueta bendita. Todos levados em sagrada procissão ao quintal. Pois que se era morta a mãe, dever-se-ia levar à juízo suas comparsas.
Os vizinhos não saberiam, nem tampouco os demais integrantes daquela família, mas a explosão se deu tão incontrolável que naquele mesmo dia, antes que o sol repousasse irremediável, os olhos das santas chorariam a grande dor dos destroçados na frialdade inorgânica do chão.
Amparada no portal de mogno, com o rosto desfigurado pelo crepúsculo, a pobre serviçal esperava ansiosa das três gárgulas augustas algum sinal de que fora compreendida em sua mensagem. Enquanto aguardava ofegante por uma réplica, a luz do poente adentrava pelo hiato da porta, descortinando a cena e tornando-a movediça em sua quântica essência, revelando antes da hora, sua inquieta permanência.
Na atmosfera do cômodo, minúsculas partículas desprendidas de suas superfícies rebelavam-se contra a claridade violenta da luz. Sua dança atravessada pela luminosidade incandescente dava ao ambiente o tom de um espetáculo que se havia anunciado desde tempos imemoriais. Na mesa de centro, o vítreo espelho refletia um teto vazio de qualquer apontamento, não fosse o regozijo com que a clarabóia de seus olhos presenciava, por vez ou outra, indiscretos acontecimentos. O lustre magno, mais adiante do teto, reluzia em suas pequenas pedrarias a luminescência do entardecer em cores múltiplas, deixando aos poucos a retina dos retratos se acostumar aos seus artifícios visuais.
À direita da porta, um enorme vão encaminha às escadas de onde se ouvia no passado os passos da grande matriarca. Todos os dias, sua presença se fazia sentir nos anexos da sala, a observar e controlar das crias cada impulso latejante. Pois que não havia desejo que se pudesse exprimir perante os olhos convexos da mãe. Um olhar que tudo dizia sem ao menos proferir palavra. Esses mesmos olhos que encheram a casa das repressões morais dos bons costumes católicos faziam crer na diabólica essência do enunciado, que a todo custo deveria ser evitado, a fim de que se alcançasse a redenção silenciosa.
Do lado oposto do cômodo, rodeado por esquecidas velas brancas, o altarzinho da santa emanava das flores secas. Abandonada desde a enfermidade, fora outrora uma grande aliada assim como as demais réplicas espalhadas pela casa. Ciente de sua limitação humana, a mãe almejava expandir a vigilância para além da sua própria presença: foi quando conheceu a ciência de vigiar por olhos alheios aquilo que lhe cabia, fazendo emergir da austeridade da casa suas mais novas companhias. Sombras e imagens de virgens e meninos alados, de mártires mergulhados em sangue vivo de tinta opaca, ícones santificados daquela desgraça que reivindicava da vigília constante seu devido peso. Pois aquelas imagens lembravam a todo o momento que na ausência dos olhos da mãe bastavam os olhos de gesso. Aquelas estátuas e seus simbolismos arcaicos. O simbolismo do silêncio que não dá lugar à palavra. A produção de uma angústia diária, a se acumular pelas vísceras e irromper na ponta dos dedos. E assim foram se fazendo as três irmãs naquele sobrado: sob os olhares aflitos de santos consternados.
No centro do cômodo, sobre o sofá, a concretude do desejo materno em rendas de ponto-cruz. As três imagens sacro-santas, iluminadas pelo poente, a coser em seus colos inférteis os fios de uma tarde irrisória. Incólumes em seus longos vestidos matronais e de cores desbotadas perfaziam cada ponto com a mesma mobilidade maquinária, perfurando a tez compacta do tecido cautelosamente, em um misto de agonia e paciência, cultuando nesse ritual as coisas em sua constante indiferença. Cresceram envoltas no mistério da existência própria: tudo que lhes era admitido era o movimento constante da agulha, que entrava e saía obscena da tela em branco. Foram elas limitadas ao som opaco dessa sina, no tardar das horas do dia, ininterruptamente.
Todo este tempo se passara sem que pronunciassem a mínima palavra e enquanto ainda a morte ecoava no silêncio sepulcro das irmãs, a empregada desfalecia lentamente, escorregando pelos veios da madeira. Sua mão sinuosa acompanhando a seiva morta, os dedos incitando as farpas microscópicas e o sangue alheio jorrando invisível pelas frestas escuras de sua alma dilacerada. Alma que alcançara o solo sem ouvir das irmãs o enunciado da palavra. Eis que o silêncio das irmãs nunca fora tão arrebatador. O silêncio punhal no ventre febril da criada assassinava a mensageira agourenta como em tempos ancestrais. O silêncio sem vida, sem sinais. E a ausência de sinais provocara-lhe os arrepios mais perniciosos. Tanto mais eloqüentes quanto maior o sigilo de sua grande dor. A dor de uma paixão aniquilada. A dor de um abandono inventado. Imaginário. E mesmo assim, ressentido.
Quando soubera da notícia e vira os pés da morta, correra desesperada para contar às três efígies entorpecidas que se esvaiu de vez a grande mãe e seus grandes olhos. Esperava delas o consolo que não recebera da enfermaria vazia, crente na reciprocidade de seu sentimento. Esperava imitar do olhar das irmãs a expressão de amargura que se fazia no peito comovente. Mas a lágrima deslizante da tormenta só brotou na ingenuidade de sua figura. Nada fora expresso pelas três criaturas de gelo. Na ausência de resposta, tudo o que restou foi a explosão do seu desespero.
Foi quando deu-se o revertério a soar agudo nos tímpanos e as irmãs não puderam sustentar o silêncio em sua completude. Depois de todos aqueles anos, não podiam reprimir a guturalidade da voz que se manifestava no peito recoberto da criada exigindo das amas uma atitude ou posição qualquer que lhe amenizasse o desconforto da morte anunciada. O som remoto daquelas profundezas cavernosas produziu então um grito incomensurável dissolvendo a servente em partículas de som. E o som reverberou nas cortinas, incontrolável. Estremeceu as estruturas dos vitrais e do aço. Arrancou dos próprios dedos a farpa de unha e sangue. Abalara o piso e o cismo abalara as santas. O grito não causara as rachaduras, mas tornara-as, finalmente, visíveis aos olhos de todas.
Tudo que acontecera depois pode-se dizer que fora conseqüência desse grito ou de milhões de gritos, súplicas, confissões, declarações e alaridos aglutinados e reprimidos que só foram finalmente devolvidos ao mundo quando não havia mais remédio ou solução. Na insistência infernal desse gemido, as três irmãs, por fim, se fizeram vivas em sua vagarosa agitação, que mal se confundia com um quase movimento. Cessaram a costura e repousaram as agulhas sobre o tecido com a consciência de que o protocolo fora quebrado e nada mais se podia fazer sobre isso. Elevaram suavemente a cabeça como quem não tem pressa em alcançar o topo, como quem aprecia a paisagem, deglutindo-a lentamente para retirar do sumo a essência represada. Quando os olhos alcançaram a criada, jazia de joelhos no vão da porta, com os cabelos despenteados e as feições de uma morta, a lágrima descendo do rosto, perfazendo o percurso do queixo e deslizando suavemente até se esvair no mundo subterrâneo do seu vestido de servente.
Lançaram à ela olhares vazios de qualquer sentimento. Vazios de compaixão e de qualquer expressividade. Vazios de arrependimentos. Mesmo sem ter a resposta que almejava, a criada queria dizer-lhes que sentia muito. Mas não precisava. Todas ouviram a angústia extravasada pelos poros e pela garganta dilacerada. Dessa vez, as palavras não eram necessárias, pois que se o grito da empregada soara mais alto que o silêncio das irmãs, é porque fora rompido laço maior que o laço sanguíneo. Mas nada seria descrito. E novamente, tudo seria obliterado e devidamente esquecido.
Observaram por entre alguns minutos a boneca quebrada sentada no umbral, no limiar da culpa e da absolvição, esperando que elas finalmente tomassem a frente e liberassem-na de seu fardo. Mas elas esperaram pacientemente até que a criada se acalmasse e depois inclinaram as cabeças para a luz, assim permanecendo imutavelmente.
Após o desfalecimento da servente, as três se entreolharam como cúmplices de um delito infantil. Agora, sabiam o que deveria ser feito. O que planejaram durante todos os anos por baixo dos olhos ferinos da mãe seria finalmente posto em prática, a malignidade que desde sempre arquitetavam. Foi então que, sóbrias como a luz que lhes atravessava, encaminharam-se para os quartos, para a cozinha e para os banheiros, extraindo de seus conteúdos cada escapulário, cada santinho com seus cordeiros, cada mosaico da virgem, cada afresco angelical, cada quadro e estatueta bendita. Todos levados em sagrada procissão ao quintal. Pois que se era morta a mãe, dever-se-ia levar à juízo suas comparsas.
Os vizinhos não saberiam, nem tampouco os demais integrantes daquela família, mas a explosão se deu tão incontrolável que naquele mesmo dia, antes que o sol repousasse irremediável, os olhos das santas chorariam a grande dor dos destroçados na frialdade inorgânica do chão.
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